Tenho uma certa obsessão pela questão da enorme quantidade de impostos que se paga no Brasil e a eterna falta de retorno por parte do Estado.
Numa noite de quinta-feira, num delírio de febre por causa desta gripe chata que assola gargantas e corpos em São Paulo, sonhei com um escritor americano que em 1848 – olhe lá, faz quase cento e cinqüenta anos! – , inventou de se recusar a pagar imposto em protesto contra a escravatura e a guerra EUA x México.
O escritor, Henry David Thoreau, passou uma noite inteira na prisão por causa deste gesto ousado. Explicou a coisa num ensaio célebre, “Desobediência Civil”. Neste texto, conclama os indivíduos à resistência concreta quando os governos cometem injustiças. Para ele, votar não é o suficiente, é preciso ir além. Thoreau criou a desobediência civil, a individual.
Quase um século depois, Gandhi, na Índia, desenvolveu a desobediência civil coletiva, aquela da não-violência, uma outra história.
No meu sonho, Thoreau conversava com o presidente Abraham Lincoln uma conversa impossível. Ambos foram contemporâneos e até tinham um semblante muito parecido. A mesma barba recortada, a ausência de bigode, entradas semelhantes no reparte do cabelo no lado direito da cabeça. No olhar deles se nota, e você pode conferir pelos retratos, total impenetrabilidade em Lincoln e certa pureza em Thoreau. Não foi à toa que o primeiro virou estadista assassinado e o outro morreu escritor.
Ambos dialogavam amigavelmente. Pareciam estar no gabinete presidencial, mas podia ser uma ante-sala de teatro. O local não importa, o diálogo é que era muito atual e tinha a ver com o nosso Brasil de hoje. Thoreau falava com certa bonomia, aparentemente cansado de dar explicações:
– Bem, Abraham, minha resistência é individual. Não me importo se a copiam. Ao contrário, escrevi o libelo para isso.
– Henry, trata-se de um acabado mau exemplo. Olhe bem o que está acontecendo lá no Brasil. Os homens estão levando ao pé da letra suas idéias e uma quantidade enorme de gente sonega imposto de maneira deslavada.
– Que eu saiba, Abraham, sonegam sim, mas nem todos, infelizmente. Só os que ganham muito dinheiro. Quem vive de salário em carteira assinada não consegue sonegar não.
– Pois é. Desobediência civil levada a cabo por gente muito importante.
– Mas o governo só pensa em cobrar mais impostos, ninguém consegue ter de volta aquilo que paga – nem em obras públicas, nem em educação, nem em saúde… O esperto sonega mesmo. O governo sabe muito bem o que acontece.
– Sonega porque você deu o mau exemplo! Pega mal para nossa imagem.
– Descanse, Abraham. Para desgraça das minhas teorias tem um intelectual lá, um sujeito pensante como eu, que assumiu a presidência.
– Eu sei, Henry. Por isso mesmo. Desconfio muito de intelectual no poder. Você gostaria de tocar o Ministério da Justiça, por exemplo? Não é um convite, apenas curiosidade…
– Nunca! Intelectual só serve para pensar, refletir, iluminar, ensinar, Abraham. Político é para governar.
– Então você acha que este moço, um sociólogo erguido à política, alguém mais acostumado aos debates do que às ações, será ele capaz de resolver a coisa?
Foi aí que Thoreau se levantou da poltrona como que iluminado:
– Então não tem jeito mesmo e a minha desobediência civil está salva. Encontrou seu lar!
Ilustração: Foto de David Byrne, “O Museu Secreto do Gênero Humano”, parte do trabalho intitulado “A Soma do Conhecimento do Mundo”.
Publicado na Revista da Folha em 16/04/95, pág. 30.