Eu comecei a trabalhar na Folha em 1981, quando fui contratado para editar a “Ilustrada”. Cláudio não estava mais lá ou estava se preparando para ser correspondente na Inglaterra. Eu vinha trabalhando com Cláudio Abramo desde 1978, no jornal mensal Leia Livros, um book review editado pela Editora Brasiliense e que pertencia ao Cláudio e ao Caio Graco Prado. Ambos eram sócios neste jornal e o Cláudio era o secretário-geral do Leia Livros. Ele escolheu esta denominação ao dizer que se dera certo no Vaticano e no Kremlin então podia dar certo no Leia. Na época, o socialismo ainda não havia ruído…
Cláudio foi meu grande professor de jornalismo. Convivia bastante com ele por conta do Leia, o qual fechávamos sempre nas madrugadas, depois que ele chegava da Folha, enquanto estava no jornal escrevendo editoriais (tinha sido afastado da redação), e depois, quando ele trabalhou no Jornal da República.
Cláudio dizia que o jornalismo era um exercício cotidiano de inteligência e caráter. Não existia meio termo com ele; ou gostava muito de uma pessoa ou a odiava. Era assim no jornalismo e ai de quem pisasse na bola do caráter. Foi a partir dele que acabei fazendo contato com os melhores intelectuais e jornalistas daquela geração. Foi com ele que aprendi a editar, cortar e titular textos. Foi com ele que aprendi a pautar e a escolher quem deveria escrever sobre qual assunto.
Cláudio tinha uma cultura enciclopédica, mas nenhum eruditismo. Naquela época, final dos anos 1970, ele já tinha visto praticamente tudo. Era cético, mas sem ser pessimista. Trabalhava desesperadamente para acabar com o que ainda restava de ditadura. Generoso com os amigos e exigente com os inimigos, nunca poupou quem tivesse faltado com o caráter numa situação ou em outra. Inclusive com alguns mitos que eu colecionava.
O mais arguto
Eu usava, na Brasiliense, a mesa que fora de Monteiro Lobato, meu primeiro grande ídolo. Cláudio não entendia esta decisão e exigia que o busto de Lobato fosse virado para a parede quando ele adentrasse. Era um busto de bronze, ficava na recepção. Nazaré, secretária do Caio Graco, era obrigada a virá-lo para a parede quando o Cláudio se aproximava. Ele era assim, idiossincrático. Nunca entendi direito a bronca contra Lobato. “Ele me deu uma entrevista uma vez vestido de peignoir e do parapeito da janela”, dizia o Cláudio – eu continuava sem entender a bronca. Nunca perdoou Jorge Amado, outro exemplo, talvez porque se popularizara demais…
Todas as histórias que contavam sobre o Cláudio me pareciam exageradas. Descobri depois que eram todas verdadeiras e nada exageradas. Como uma vez, chegando na Lisboa salazarista, bateu a bengala no balcão da alfândega e gritou: “Eu quero um tradutor! Eu quero um tradutor!”. Não se fazem mais pessoas como Cláudio Abramo.
Foi a reforma de 1975 que colocou a Folha na rota dos grandes jornais, tanto do ponto de vista conceitual quanto estilístico. Do ponto de vista conceitual, foi a reforma que lhe deu o caráter pluralista e ecumênico que ela guarda até hoje. Do ponto de vista estilístico, foi Cláudio quem criou, por exemplo, duas páginas que nenhuma reforma gráfica pela qual o jornal passou (e foram inúmeras) conseguiu destruir: as páginas 2 e 3 da Folha são praticamente as mesmas desde aquela época. Que força tem aquela diagramação, saída do lápis do Cláudio, que também desenhava!
Não há jornalismo brasileiro, em especial em São Paulo, nas décadas de 1960 e 70, sem Cláudio Abramo. Ele ajudou a erigir o Estado de S.Paulo e depois articulou a grande reforma que deu à Folha de S.Paulo a estrutura que ela adquiriu dos anos 1980 em diante. Foi o mais arguto secretário de redação que os jornais paulistas já tiveram. Ele era o exemplo vivo do exercício cotidiano de inteligência e força de caráter.
Publicado no Observatório da Imprensa em 4/7/2005