Crooked, um radical metacrítico

Para Arnold Crooked todos os problemas se resumiam a este: como criticar uma obra de arte sem envolver-se com, ela, sem determinar de antemão a análise a ser realizada?

Capa do livro de Arnold Crooked nunca traduzido para o português.

Capa do livro de Arnold Crooked nunca traduzido para o português.

Aos 72 anos Arnold Crooked permanece com o mesmo espírito irrequieto que o marcou quando jovem. Conti­nua arguto e desbocado, metódico e sonhador. Apesar do PhD em teoria literária recusa-se sistematicamente à “chatice” de ministrar aulas e prefere viver com os caraminguás regulares recebidos do estado norte-americano. Não pensa mais em escrever nenhum livro, a não ser aperfeiçoar sua única obra, uma insólita teo­ria crítica. O curioso é que, completamente desconheci­do tanto na América do Norte quanto na do Sul, Crooked está fazendo escola e criando inúmeros seguidores, ano­nimamente.

Cético em relação aos pressupostos teóricos balizado­res de toda a civilização ocidental, Arnold Crooked ja­mais buscou guarida para suas idéias em publicações do tipo “The New Yorker”, “New York Review of Books”, nem faz resenhas para o “New York Times”. Solitário, detesta coquetéis de intelectuais, opõe-se a viagens para promover suas idéias e contenta-se, vaidoso na medida, em saber ele mesmo da importância das suas idéias, despreocupado com as invectivas ou os elogios que alguém possa lançar sobre elas. Invectivas ou elogios, é preciso dizer, que ja­mais vieram. Sua única fraqueza, ele mesmo confessa, é ser “tarado por festinhas de adolescentes do interior, nos EUA”, onde possui alguns primos, os quais visita regularmente.

Ele nasceu na Inglaterra em 1911. Filho de um modes­to cenógrafo londrino, quis o destino que estivesse em 28 de julho de 1929 em Baden Baden, na Alemanha, na estréia de “A Peça Didática de Baden Baden”, de Ber­tolt Brecht. “Ali eu senti que alguma coisa mexeu comi­go”, explica ele na introdução de seu livro.

Um único livro

Crooked fez parte dos estudos na Alemanha, para on­de a família se mudou em 1927. Seu pai, que sempre tra­java roupas pretas em virtude de luto familiar, teria si­do o cenógrafo predileto de Bertolt Brecht, mas um de­sentendimento definitivo com o dramaturgo levou-o no começo dos anos 30 para Los Angeles e depois para Was­hington, onde se especializou em construir “fachadas impressionantes”. Foi na capital norte-americana que Crooked terminou os estudos regulares e empregou-se na burocracia norte-americana. É lá que ele reside, a trinta minutos da Biblioteca do Congresso, local onde consome, ainda hoje, doze horas de seu precioso tempo diário. Foi ali também que ele criou um método extre­mamente pessoal e original para o exercício da crítica.

Tentarei – numa deliberada afronta ao próprio méto­do desenvolvido por Crooked – resenhar seu único li­vro, o tijolo “The Critical Challenge: a Methodology” (Fallere Books, N. Y., 1968, 582 p.). Nestas pági­nas, com uma clareza invulgar, Crooked desenvolve as bases de um método singular, a “criação crítica”.

No primeiro capítulo, cujo título eu traduzo livremente para “Confusão e Pilhéria do Primário Brecht”, é feito um apanhado rápido das teorias do teatro dialético do famoso dramaturgo, concluindo pela inoperância da teoria brechtniana no desenvolvimento das artes cêni­cas e por algo considerado por Crooked como o “conse­quente fracasso do teatro de Brecht na sociedade indus­trializada”. Para Crooked, Brecht não soube explorar o próprio método nem o levou até as últimas conseqüências, caso contrário o teatro (e até o cinema moder­no, adianta) “não seria o que é”. Para Arnold, Brecht cometeu tantos erros que o impede, por exemplo, de estar para o teatro como Freud está para a psi­canálise ou como Saussure está hoje para a semiologia.

No segundo capítulo, “O Músico é a Boca e Eu o Bumbum”, Crooked esclarece que não confunde arte (cinema, tea­tro, literatura, poesia .. .) com as Ciências (psicanálise, semiologia…), mas usa exemplo comuns às duas áreas “como imagens radicais para explicitar melhor o pensamento”. Enfim, na página 123 encontramos exata­mente uma pista das intenções do autor. Arnold Croo­ked é um cético em relação à história da crítica e princi­palmente em relação à crítica moderna (ele constrói seu método para todas as artes passíveis de uma análise crítica) porque ela não cria, mas simplesmente trabalha em cima de um objeto dado. O artista (ou escritor, pintor, músico etc.) está sempre no princípio de sua obra enquanto o crítico tem que conformar-se com o final, com a obra acabada. Montado em argumento de Júlio Cortázar ele exemplifica: “Um saxofonista é, por exemplo, a boca e eu sou a orelha, e por que não dizer que ele é a boca e eu o bumbum…” No arremate, o autor não es­conde seu desconforto quanto ao histórico papel de con­tinuidade e análise da crítica sobre a obra de arte.

Este zangado burocrata prega a crítica como criação, como se fosse ela mesma uma obra de arte. Não se con­forma com a possibilidade do crítico ser sempre a esta­ção de chegada, o “triste final” de algo que “começou como sabor, como delícia de morder e mascar”.

Como levar adiante a possibilidade deste tipo novo e radical de crítica? Ele tem a metodologia. Seu livro traz, inclusive, exemplos precisos de uma nova e radi­cal maneira de criticar.

Ele parte do pressuposto de que toda crítica feita até aqui está completamente errada. Nisso, é impiedoso. Com argumentos sorrateiros e ferinos vai destruindo um a um os grandes críticos literários despejando far­pas para todos os lados. Alguns exemplos: o intocável Edmund Wilson, para Crooked, não passa de um “ini­ciante com boas intenções”; Roland Barthes, além de “fotógrafo frustrado”, é um “francês, e como todo francês, preso ao seu umbigo”; Walter Benjamim (ami­go pessoal de seu amado e odiado Brecht) ganha o per­fil de um “judeuzinho covarde, louco de desejos homos­sexuais por Paul Klee e com frêmitos por multidões”; Umberto Eco não passa de “um italiano convencido de que toda obra de arte se parece com uma porta”… Não me alongarei, deixo para o leitor a surpresa de encon­trar no livro de Crooked (ah, a eterna indagação: quan­do algum editor brasileiro vai interessar-se pela tradu­ção?) seus venenos escandalosos.

No principal capítulo do livro, “Tempo É Dinheiro”, nosso original pensador explicita as razões de erro da crítica: “Para analisar o crítico precisa ler o livro, ou­vir a música, ver um filme ou sentir a ópera. Toda a história da crítica atesta a necessidade do conhecimen­to prévio daquilo que vai ser criticado. Ao ler um livro, quer o crítico queira quer não, ele se envolve com ele.” Ora, para Crooked, isto em si pressupõe um temero­so “envolvimento involuntário”, do crítico com seu obje­to. E esse envolvimento determinará necessariamente o “corpus” da análise a ser realizada. Uma vez envolvido com a obra em questão o analista precisa “partir dela” para criticá-la e concluir alguma coisa.

De uma maneira simplória ele arremata: “Não im­porta se o crítico ame ou deteste uma obra de arte, exaspere-se ou delicie-se com ela; para concluir uma idéia ele precisa estar envolvido com ela, ter despendi­do tempo com ela”, e isto, notem bem, “tira de qualquer um a possibilidade de exercer uma crítica radical sobre a obra em questão”. Uma crítica séria de uma obra qualquer pressupõe, para ele, que em nenhum momento alguém se envolva com a obra. Só assim, sem se imis­cuir no objeto o crítico poderá julgar, já que nada tem a ver com o objeto estudado. Entra aí a noção de “paren­te” e qualquer aproximação do crítico.com o objeto já determinará um certo grau de parentesco ou vizinhança com a obra.

Para Crooked, a crítica radical, precisa, verdadeira, pressupõe um “distanciamento” do analista em relação à obra de arte. Eis a chave de seu método. E foi na fonte épica e dialética do teatro brechtiniano que ele bebeu, retirando o buquê para encorpar sua teoria inédita. Em outras palavras: para o nosso emérito metacrítico a no­ção de “dispêndio de tempo” anterior ao processo de “criação crítica” redunda automaticamente em um ir­remediável envolvimento do analista com o objeto de estudo.

Evitar a empatia

Finalmente, é duro pensar a possibilidade, como evi­tar esta espécie de empatia ou envolvimento (ou, na maioria das vezes, pré-conceito em relação a um autor ou um músico etc.) que, necessariamente, vai determi­nar o sabor da crítica? Trabalhando conceitos de seu padrinho alemão ele esclarece: “A auto-observação praticada pelo crítico, em um ato artificial de autodistanciamento, de natureza crítica, não permitirá ao cria­dor crítico uma empatia total, isto é, uma empatia que acabe por se transformar em autêntica auto-renúncia e cria, ao contrário, uma distância magnífica em relação à obra de arte. Isso não significa, porém, que se renuncie à empatia. É pelos olhos, em conjuminância com os outros quatro sentidos, que conduzem ao cérebro as informações armazenadas para ali serem trabalha­das, que se desenvolverá a atitude de observação, ex­pectante, que redundará na conclusão antiempática e entrópica do crítico”. O verdadeiro crítico não estará mais no fim de um processo mas realizará ele mesmo um processo de criação autônoma e completamente desligado, no sentido imediato, de outro processo criador.

Portanto, conclui Crooked, é absurdo e completamen­te descartável o trabalho intelectual que precede a críti­ca tradicional, apelidada por Crooked nesta altura de “rescaldo analítico”. Assim, para produzir a crítica de um livro não é preciso tê-lo lido. Elimina-se com o méto­do crookeano a “necessidade neurótica e ultrapassada de leitura prévia, do ouvir prévio ou do sentir prévio”. Crooked propõe a crítica radical, sem interferência, dis­tanciada da obra para evitar qualquer envolvimento. Somente assim se terá, então, a “verdadeira crítica da obra de arte que será, ela mesma, também uma obra de arte”.

Publicado no Folhetim, da Folha de S. Paulo em 6/2/83.

P.S. de 2008: Arnold Crokeed morreu algum tempo depois da publicação deste artigo, exatamente quando se desvelou que o exemplar do Folhetim, que tinha por título de capa “A cultura do esquecimento e da falsificação”, foi todo composto por textos nos quais os autores trataram de personagens fictícios. Organizado pelo então editor, Rodrigo Figueira Naves, escreveram Paulo Mendes Campos (“O poeta Agrícola de Almeida”), Alberto Tassinari (“Fraivaux: a carta 728 a Terivé”), Cláudio Weber Abramo (“Escorregões galileanos”), José Paulo Paes (“Ossian, o falsário verdadeiro”), Ronaldo Brito (“Manuel Mousinho, um polemista secreto”), Bento Prado Júnior (“Desgaudrioles: a excentricidade da razão”), além do texto acima.

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