Heidegger: Seria ele o monstro da Floresta Negra?

Em Heidegger e o Nazismo, Victor Farias tenta demonstrar a contaminação entre a atitude do autor e suas idéias

Rebondissement. Diga rebondsman. Palavra francesa usada quando um assunto qualquer repercute muito. Traduções: rico­chete, pulo, ressalto. Pois faz três meses que as revelações contidas no interior de um livro de capa branca ricoche­teiam como perigosos projé­teis sobre poderosas convic­ções intelectuais do ocidente. Foi gravemente ferida a imagem do mais nobre pen­sador do século, do homem que investigou até os limites possíveis da linguagem te­mas os mais caros e delica­dos da filosofia, como o Ser, o Tempo, a metafisica, o ad­vento da técnica…

Já se sabia, é evidente, que este notável arquiteto das alturas tivera uma relação muito estreita com o nazis­mo, Ele mesmo revelara alguma coisa sobre uma es­tranha convivência com o aparato nacional-socialista. Esta relação “acidental” permanecia até outubro do ano passado como a versão definitiva de uma forçada coabitação. Não era verdade.

O monumento lingüístico-­cerebral conhecido por Mar­tin Heidegger, morto em 1976, está sendo acusado por um de seus ex-alunos de ter aderido com convicção ao nacional-socialismo, de ter estado ideologicamente pre­parado para isto quando en­trou para o partido nazista, de ter conservado essas con­vicções durante toda a sua vida. E, o mais trágico: este autoritarismo se imiscuiu no seu pensar.

Coisa séria. Heidegger in­fluenciou profundamente, por exemplo, o pensamento filosófico francês. Debita·se a ele o aparecimento do existencialismo de Jean-Paul Sartre, Michel Foucault foi beber na sua fonte, veja As palavras e as coisas. Jac­ques Derrida, próximo da esquerda, é um dos discípu­los mais famosos, apesar de independente.

Agora, sem mais nem me­nos, chega um professor lati­no-americano e desmonta to­da uma versão cuidadosa, mas opaca, sobre o passado nazista do mestre da Flores­ta Negra, do pensador dos caminhos que não levam a parte alguma, das trilhas perdidas, dono da pena de maior sofisticação etimológi­ca de que se tem notícia em toda a história da filosofia.

“É preciso ler Heidegger”, defende Jacques Derrida. “O pensamento de Heidegger é mais forte do que o dos que o acusam”, socorre da Itália o filósofo Gianni Vattino, con­siderado o maior leitor do pensador alemão. “Uma coi­sa é constatar o desvio político de Heidegger, uma outra analisar o impasse intelectu­al no qual ele se encerra tarde demais”, considera André Glucksmann, que não vê mérito no livro; nem filosófico, nem informático, provoca efeito apenas entre os ignorantes. Glucksmann diz que se conhece desde as discussões entre Sartre e Merleau-Ponty (via revista “Temps Modernes”) a “rea­lidade e o contexto da adesão indigna do grande filósofo ao nazismo”.

Mas em Frankfurt, o maior expoente da filosofia alemã atual, Juergen Ha­bermas, não deixou por me­nos: “Eu mesmo já denun­ciei detalhadamente como o passado nazista de Heideg­ger não ficou absolutamente exterior ao seu pensamento filosófico”. O mesmo argu­mento é ferinamente utiliza­do por outro filósofo italiano, Emanuele Severino: “o dis­curso de Heidegger é total­mente desarmado face ao nazismo: se o fundamento último da realidade é o de deixar fluir os eventos, nada há a fazer contra o nazismo como evento”.

Metralhadora

Tem sido um carambolar de entrevistas, declarações, chistes, rosários de “eu já tinha falado”, programas de televisão (dois na França, um na Inglaterra), defesas apaixonadas e ataques cruéis à imagem criteriosamente cultivada por Heidegger, O mesmo que – reza a lenda­ – negou-se a dar uma entrevis­ta a Jean-Paul Sartre e mandou a secretária responde que “o professor não atende jornalistas”.

A rigor, até sair esta me­tralhadora em forma de li­vro, sabia-se sobre o passado “negro” de Heidegger ape­nas o que ele deixou saber e revelou numa célebre entre­vista concedida ao semaná­rio alemão “Der Spiegel”, em 1966, e publicada somente depois de sua morte, em 1976. Segundo a versão válida até outubro, o professor Martin Heidegger teve uma relação acidental com o nazismo, temporária, entre 1933 e 1934: “animado pelo único desejo de regenerar a universidade alemã, ele acreditava que uma revolução nacional, em marcha, viesse permitir esse renascimento”. Foram seus colegas que o elegeram reitor da Universidade de Friburgo em 1933. Um ano depois, abril de 1934, ele pediu demissão. Reco­nheceu que durante o tempo em que fora reitor fizera alguns alguns discursos “infelizes”, ­mas circunstanciais. Depois ­que deixou a reitoria passou dez anos em silêncio sob constante vigilância das autoridades, suas publicações sob censura.

Tudo mentira. As provas de que as coisas não se passaram exatamente assim estão neste livro que Glucksmann considera um trabalho de fichário do tipo KGB. Pode ser. Como uma formiga, o seu autor vasculhou todos os arquivos sobre o nazismo e sobre o autor que encontrou abertos. Leu toda a imprensa nazista que restou, incluindo jornais, revistas e publicações de instituições nacional-socialistas. Esquadrinhou todos os relatórios internos das universidades alemãs pelas quais passou ou foi indicado para lecionar o filósofo.

As portas para a pesquisa do passado de Heidegger não estão, infelizmente, totalmente abertas. Faltam ainda muitos documentos para serem lidos. Seus manuscritos, arquivados na Deutsches Literatur Archiv (Marbach) não têm sua utilização liberada para fins científicos e deverão permanecer fechados aos olhos dos curiosos por tempo indefinido.

Isto não impede que as conclusões da minuciosa e documentada investigação sejam tenebrosas: “Heidegger foi, por todos os seus poros – atos, textos, pensamento -, um membro eminente e resoluto do partido nazista, do qual ele jamais abandonou suas convicções fundamentais”, conforme conclui Roger-Pol Droit, no “Le Monde”. O próprio autor explica sua tese central:

“Quando Martin Heidegger decide aderir ao partido na­cional-socialista, ele já havia seguido um longo caminho preparatório, cuja origem é preciso buscar no movimento social-cristão austríaco, de natureza conservadora e an­ti-semita e nas expressões que ele encontrou na região onde Heidegger nasceu e começou seus estudos”.

Origens

A investigação pega Heidegger desde suas origens na pequena cidade do sul da Alemanha, Messkirch, passa pelo seminário em Friburgo, aborda o primeiro texto do filósofo (sobre o pregador Abraão de Santa Clara – ali já estão os traços do autoritarismo), acompanha seus estudos na Universidade de Friburgo, examina seu jeito como professor de filo­sofia católica, explora a crise do modernismo e sua ruptura com a Igreja e a publicação do Ser e Tempo.

A segunda parte cuida do Heidegger reitor (proibiu não-arianos de ensinarem na universida­de) em Friburgo, seu apoio a Hitler e a pátria como tema político.

A terceira parte aborda a vida e a obra do pensador de 1934 (ano em que deixou a reitoria da Universidade de Friburgo) até a entrevista publicada postumamente, passando pe­las suas relações com os “aparelhos ideológicos do Estado” e seu retorno ex­tremamente simbólico a Abraão de Santa Clara. Este pregador religioso do fim do século 19 gosta­va de escrever coisas assim: “exceto satanás, os homens não tem outro inimigo além do judeu”.

Simultaneamente a este li­vro arrasador, saiu na Fran­ça uma pequena brochura escrita por Jacques Derrida problematizando outra ques­tão cara a Heidegger: a do espírito, “Geist” em alemão, termo considerado intraduzível. Derrida tem, frente ao desacatado pensador, o mai­or respeito. Dedicou-lhe já outras obras (como “A Mão de Heidegger”) e tem dito que as revelações de outubro já eram conhecidas e que elas não colocam em questão o pensamento do filósofo que terminou seus dias na Flo­resta Negra, na Baviera.

Sintomático foi o fato de uma análise de Derrida encaixar-se como uma luva no problema das intrincadas relações entre o homem político e o homem filósofo. Derrida acaba mostrando o quanto essas duas coisas andam juntas. Sem querer, engrossa o coro dos que dizem que Heidegger não poderá mais ser lido da mesma maneira que era lido até outubro de 1987, um mês difícil para os herdeiros do homem que via no nada o véu do ser.

Derrida ensina que em 1927, ano de Ser e Tempo, para melhor escapar das armadilhas de uma metafísica da subjetividade, Heidegger vai evitar a palavra espírito e daí para frente ela aparecerá entre aspas na sua obra: “Geist”. Mas, em 1933, no famoso discurso, enquanto reitor em Friburgo, as aspas vão sumir e, “Heil Hitler!”, o bondoso pensador vai pontificar: “O espírito guia aqueles que guiam o povo alemão”. Em 1953, ao analisar poemas de Georg Trakl, Heidegger vai dizer que “o espírito é fogo, chama, clarão, a conflagração”.

Analisando o livro de Derrida, Roger-Pol Droit explica que a partir de 1933 Heidegger não cessa de germanizar o espírito e para ele a língua alemã, e somente ela, será a depositária da significação originária deste “Geist” de fogo. “Sem dúvida, é nesta mitologia da língua alemã que é preciso buscar a reserva de violência deste pensamento”, conclui Droit.

De fato, foi um Heidegger insuspeito que sustentou até sua morte que o pensar somente é possível – hoje e sempre – na língua alemã. Os intelectuais de coçam, se mexem incomodamente nas cadeiras e discutem ad nauseam se as opções políticas de cada um, íntimas e profundas, podem ou não podem separar-se do seu “métier”. Mas, depois deste outubro negro para a filosofia, ao menos uma coisa ficou clara: Heidegger não é mais aquele.

Victor Farias, o chileno que fez tremer o monumento

Victor Farias está espantado com a repercussão de seu livro sobre as relações do pensador alemão Martin Heidegger e o nazismo. “É muito impressionante para mim, mas o mais importante é ver que a filosofia também é uma notícia, que ela não é uma coisa morta, que interessa a todos os públicos”, disse ele a este correspondente, por telefone. Ele estava no seu apartamento, em Berlim Ocidental.

Ele adiantou que Heidegger e o Nazismo deve ser publicado este ano na Itália, Japão, EUA, Israel, Espanha, Inglaterra, Noruega, Portugal, Brasil e Alemanha. Revelou que a edição alemã, a sair pela Fischer Verlag, será prefaciada por Jürgen Habermas, o único expoente vivo da famosa escola de Frankfurt.

Até agora, o livro foi publicado somente na França, traduzido dos originais em espanhol e alemão. Antes de sair em Paris foi recursado por dois editores alemães. Colocado á venda no dia 15 de outubro de 1987, com uma tiragem inicial de cinco mil exemplares, já está na segunda edição, publicada em dezembro. A editora francesa, Verdier, informa que a Paz e Terra quer publicá-lo no Brasil [o que de fato aconteceu, em 1988], mas o contrato ainda não foi fechado.

Victor Farias declarou à Folha que seu livro é uma “contribuição modesta” e que tem uma missão: “mostrar que não é possível pensar sem ter uma vida própria à altura desse pensamento”. Farias tem 47 anos, nasceu em Santiago do Chile e foi aluno de Martin Heidegger. Teve o privilégio de seguir, em 1967, o seminário privado que Heidegger ministrou em Friburgo, sobre Heráclito. Farias é casado, tem três filhos, dos quais um rapaz e uma moça moram na Espanha. Ele estuda história, ela mora em Guernica. A filha menor vive com os pais em Berlim, onde Farias leciona na Universidade Livre. Estudou cinco anos de filosofia no Chile e dez anos na Alemanha, onde se doutorou. Está morando fora do Chile desde 1971.

Ele conta também que em 1985 foi convidado para lecionar na Unicamp, em Campinas, SP. Não aceitou porque “o salário de Campinas não dava”. Disse que a universidade brasileira também não pagava nem sua viagem nem o transporte de sua mudança. Como tem uma família grande foi impossível aceitar o convite.

O livro de Victor Faris, Heidegger e o Nazismo, foi traduzido para o português e publicado em 1988 no Brasil pela editora Paz e Terra. O livro Heidegger e a Questão do Espírito também foi publicado no Brasil em 1990 pela editora Papirus.

Publicado no Folhetim, da Folha de S. Paulo de 15/1/1988

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