O Feminino

De Tróia se pode tirar a lição da importância politicamente incorreta da mulher enquanto objeto de beleza e vaidade

De todos os mitos, o da Guerra de Tróia conta talvez a mais famosa história do Ocidente quando se fala em conflitos humanos. O cavalo de Tróia permanece símbolo inesquecível da astúcia.

Pouca gente, no entanto, mulheres incluídas, observou esta lenda com olhar feminino, numa perspectiva tão buliçosa quanto a própria guerra. Pouco se fala da real razão da existência da lenda: a mulher.

Eis aí uma possibilidade de discussão para os participantes dos Diálogos Impertinentes* cujo tema é “O Feminino”, noção cada vez mais polêmica depois que o feminismo virou apenas fato histórico e datado.

Quatro mulheres estão diretamente envolvidas com o triste destino de Tróia. A guerra contra Esparta começou por obra de capricho feminimo. Foi provocada, sem querer, por uma primeira mulher, encaminhada por uma segunda (em benefício de uma terceira) e resolvida pela quarta.

Certo dia, em meio a banquete no Olimpo, a deusa Discórdia (primeira mulher) lançou à mesa um pomo de ouro com a seguinte inscrição: “Para a mais bela”. O sábio Zeus, para evitar aborrecimentos, nomeou um mortal para dizer quem era a mais bela das deusas. Entre estas se incluía Hera, sua mulher; sua filha Palas Atena, deusa da sabedoria; e Afrodite, deusa do amor. O mortal era Páris, príncipe de Tróia. Ele deu o pomo de ouro para Afrodite (a segunda) porque ela lhe prometeu em troca o amor da mais bela mortal, Helena (a terceira), mulher de Menelau, rei de Esparta. Páris então raptou Helena. A guerra teve início e levou ao fim conhecido.

A deusa da discórdia está no princípio deste conflito e uma mulher (Helena) moveu os homens à guerra na qual outra mulher, a deusa Palas Atena (a quarta), ajudou a ganhar. Foi de Palas Atena, em vingança por ter sido preterida na beleza, a idéia da construção do cavalo de madeira.

As razões essenciais, portanto, estão ligadas à vaidade e à intriga -ambas advindas de uma mulher, a Discórdia. Envolver deuses gregos só reforça o elo com humanos porque não existem deuses mais humanizados do que os gregos. Nem sequer existe lugar mais conflituoso do que o Olimpo, o contrário do paraíso tecido pelas igrejas cristãs.

Foram machos, historiadores e dramaturgos gregos, que popularizaram a lenda de Tróia. Óbvio, o olhar masculino esteve presente na sua narração. Mas por que tão pouco se debruçou sobre este mito na perspectiva das razões femininas?

Talvez porque, desde sempre, os homens entendam o feminino na mesma perspectiva analisada por Freud. Pare ele, o feminino é caracterizado pela “falta”. Veja como ele escreveu a respeito da fêmea: “sexo ao qual falta o órgão…”

Em alemão é pior: Freud escreveu faltar “das stuck” (o pedaço), ou seja, faltaria à mulher um pedaço…

Se de Tróia se pode tirar a lição da importância politicamente incorreta da mulher enquanto objeto de beleza e vaidade, por que também não tentar virar de cabeça para baixo o próprio Freud e caracterizar o masculino, então, pelo excesso?

* Os Diálogos Impertinentes sobre o Feminino aconteceram em abril de 1996 às 20h40, no Teatro de Arena do Tuca, com transmissão ao vivo pelos canais 20 da NET e Multicanal. Promoção da Folha, PUC-SP e Sesc.

Ilustração: A Grécia nas ruínas de Missolonghi, de Eugéne Delacorix, , 1826

Publicado na Revista da Folha em 21/04/96, pág. 14.

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