O jogo perfeito de Chico Buarque

Budapeste é um divertimento literário original no qual o autor esculpe cada palavra

O terceiro romance de Chico Buar­que foi recebido com estardalhaço por escritores, críticos e jornalis­tas. Ao contrário de Estorvo, o primeiro, publicado em 1991, e de Benja­mim, de 1995, pode-se dizer que houve unanimidade na recepção de Budapeste. Até agora, todo mundo adorou o livro. O público, idem: o romance encabeça as listas de mais vendidos, chegou às livrarias com 50 mil exemplares praticamente vendidos.

Entre os escritores, o prêmio Nobel de li­teratura José Saramago foi um dos primei­ros: “Não creio enganar-me dizendo que al­go novo aconteceu no Brasil com este livro”. Marcelo Rubens Paiva: “Chico mergulha no ofício como poucos: inventa”. O tradutor e poeta Nelson Ascher, de origem húngara, considerou a “narrativa irônica e divertida” e ainda viu no livro uma influência da literatura húngara da primeira metade do século passado. Se não existiu a influência, haveria aí “mais uma camada de mistério”.

José Miguel Wisnik, professor de literatura e músico, escreveu que o livro se transforma em poesia quando acaba: “O romance escon­de a versão oculta de si mesmo, e se soletra to­do, num flash extremo, como uma língua-­música, que se desse de uma vez; por inteiro”. O jornalista Daniel Piza resumiu: “Chico Buar­que conseguiu em Budapeste unir a qualida­de principal de cada um dos dois livros anteriores: a força expressiva de Estorvo e a habi­lidade narrativa de Benjamin”. Luís Antônio Giron considerou o livro de uma “beleza rara e diabólica como a emitida por Budapeste”.

Para situar como a recepção agora é outra em relação aos romances anteriores, o pró­prio Giron lembra, na revista Época, que “o mais influente critico literário do Brasil, Wilson Martins”, considerou Estorvo uma farsa que queria se passar por grande arte e que “os críticos apontaram lugares-comuns e semelhanças” de Benjamim com a obra de Rubem Fonseca.

Se, como lembra Wisnik (que discorreu so­bre o livro no site do iG), a literatura, das artes, é a única que não precisa se exibir, Chico Buarque produziu, ao contrário, um espetáculo de exibição literária. Mais do que romance, ele criou talvez um jogo, um divertimento literá­rio no qual o escritor-personagem é um “ghost-writer” paradoxal: adora e atormenta-­se em se mostrar não se mostrando.

A trama é aparentemente simples: um es­pecialista em escrever cartas, artigos, dis­cursos ou livros para terceiros, sob a condi­ção de permanecer anônimo, se vê por aca­so numa cidade onde não entende a língua, Budapeste, local no qual o próprio Chico Buarque nunca esteve, mas parece conhecer como se ali tivesse vivido.

No livro se narra a história de José Costa, ou Zosze Kósta, como aparece na contraca­pa, em exata oposição ao nome de Chico Buarque, no propósito de fundir o autor real com o autor-personagem – ou Kósta Zosze, como o próprio nos ensina a falar quando se trata de nomes húngaros.

Especialista em escrever livros por enco­menda, José Costa produz um best-seller no Brasil e acaba escrevendo uma obra-prima em húngaro – um poema para um poeta esgota­do de si mesmo -, aquela língua que passou a dominar, por obra de uma mulher, a partir da sua segunda estada em Budapeste.

As mulheres, como notou a psicanalista Anna Verônica Mautner, também no iG, têm uma presença destacada neste jogo: “As fi­guras femininas são estáveis, produtivas e aparecem – falam, ensinam e estão sempre onde se imagina que estejam”.

José Costa tem um porto seguro na sua mulher carioca, a Vanda, uma apresentado­ra de televisão sempre atarefada e que lê pa­ra o público algo que não entende. Foi com a húngara Kriska que José Costa aprendeu o idioma magiar (o nome do povo dominan­te na Hungria) porque “língua não se aprende na escola”, conforme afirma Kriska ao se conhecerem, uma das duas frases do livro mais repetidas nas críticas publicadas (a outra é a de que o húngaro seria a “única língua do mundo que o diabo respeita”).

O livro mais famoso do anônimo José Cos­ta – talvez antes de aparecer o próprio Budapeste que se deixa escrever enquanto se lê no jogo que nos propõe Chico Buarque – é O Gi­nógrafo. José Costa o escreve de encomenda para um empresário alemão e inventa a histó­ria do personagem dedicado a escrever no corpo das mulheres, daí o título. “Gino” quer dizer mulher. Vem do grego como também vem “grafo”, ou seja, escrever, inscrever. Ginó­grafo: aquele que escreve na mulher.

Chico Buarque tem-se dedicado com de­terminação ao trabalho de escrever romances, três em doze anos. Como os anteriores, Budapeste parece ter cada letra pensada para estar ali onde está. Cada palavra parece esculpida para caber naquele preciso lugar, inserida de forma milimétrica. Como expe­riente autor de letras de música e poeta que é, Chico Buarque escreve romances como se compusesse um longo poema em prosa, no qual ritmo, conteúdo e linguagem formam um todo, completo e complexo nas suas ambições.

Como se trata de um livro que conta a his­tória de um anônimo escritor, a cada frase se tem a fantástica impressão de que o autor bordou e rebordou cada sentença, cada li­nha, cada inflexão, cada observação do coti­diano, e elas são tantas! Budapeste é um livro cuja arquitetura se expõe na leitura de­le mesmo, como nos alertando em todos os momentos: olhe, você está lendo um livro, veja como se pode escrever bem e de forma precisa.

Lembra, na impressão que causa em sua determinação de escrever o livro definitivo, o segundo romance de Susan Sontag, Dea­th Kit, no qual é difícil entender o que é rea­lidade e o que é sonho, mas onde jogo com o leitor e o desejo de produzir “a” obra estão sempre aparentes. Além disso, em Budapes­te joga-se também a questão da identidade e de seu duplo, abrigo da literatura. Desse jogo, o perfeito escritor de versos perfeitos não consegue escapar.

Publicado no Valor, edição de 10/11 e 12 de outubro de 2003

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