Entrevista a Marcos Augusto Gonçalves para o livro Pós-tudo – 50 anos de cultura na Ilustrada, de sua autoria, publicado pela Publifolha, São Paulo, em 2008, págs 108 e 109.
“Preocupação mercadológica é falar com autoridade e agilidade sobre o que está acontecendo”
Entrevista com CAIO TÚLIO COSTA
Caio Túlio Costa, nascido em 1953,[na realidade, foi em 1954] foi o primeiro editor na Ilustrada egresso da chamada geração de 1977. Formou-se na ECA da Universidade de São Paulo, em 1979. Foi editor do semanário Leia Livros, de onde saiu para editar a Ilustrada. Ficou no cargo de dezembro de 1981 a dezembro de 1982, período em que o caderno começou a passar por mudanças importantes. Tomou-se, a seguir; secretário de Redação, foi correspondente da Folha em Paris, ombudsman e diretor-geral do UOL, cargo que deixou em 2002
Como era o ambiente jornalístico quando você chegou à Ilustrada?
O caderno era mais lento. Eu levei para a Ilustrada um olhar diferente e uma ideia de agilidade. Fazia um mês que eu estava na Ilustrada quando o Elias Canetti ganhou o prêmio Nobel de literatura. Praticamente ninguém na Ilustrada sabia direito quem era o Elias Canetti. Eu sabia. E isso era parte do nosso problema: não havia conhecimento para certas coisas e não havia agilidade. Se eu pedisse para alguém fazer um artigo sobre o Canetti até sairia, mas não para amanhã, só para o domingo.
A Ilustrada foi ficando mais agressiva, passou a criticar coisas que jamais criticaria, passou a estar muito mais atenta a questões mercadológicas. Eu achava que o caderno tinha que se posicionar logo, colocar o leitor em sintonia o que estava acontecendo. Quando eu falo em preocupação mercadológica, é neste sentido: falar com autoridade e agilidade sobre o que estava acontecendo do ponto de vista da cultura.
Para isso foi preciso montar uma nova equipe?
Sim, eu logo fui atrás de gente nova, como o Mario Sergio Conti, que trabalhava na Folha como setorista da Câmara Municipal. Era um puta jornalista mal aproveitado. Eu cheguei para o Boris Casoy e falei: “Boris, é o seguinte, esse cara é o melhor estudante da ECA, o cara mais inteligente da minha turma. quero trazer esse cara para a Ilustrada”. E o levei. Foi redator e acabou assumindo o Folhetim, que estava sob minha responsabilidade. Depois dele veio o Rodrigo Naves, que foi muito importante para dar continuidade às mudanças. A principal medida que tomamos em relação ao Folhetim, e eu acho que aí tinha a orientação estratégica do Otavio e do Sr.Frias, foi torná-Io mais palatável para a academia, porque o Folhetim do Tarso de Castro era muito voltado para o mundo da imprensa alternativa.
Qual era sua relação com o Matinas Suzuki Jr.?
Eu o conhecia da faculdade. Ele estava casado com uma moça da cidade dele, Barretos, e decidiu voltar para lá. Até então, ele dava aula na PUC. Como ia sair, me ofereceu as aulas, e eu peguei. Um ano depois eu já estava na Ilustrada como editor, e ele me ligou dizendo que queria voltar para São Paulo. Eu o contratei para cobrir férias, depois o efetivei como redator e, logo em seguida, como subeditor. É um dos jornalistas mais geniais que a gente teve. Mais tarde, quando eu tirei férias, ele ficou editando a Ilustrada. Fez um senhor trabalho, uma Ilustrada centenas de vezes superior à que eu tinha feito, do ponto de vista da qualidade, da vivacidade etc.
Nós todos éramos muito críticos não só em relação à ditadura como em relação à esquerda tradicional consubstanciada no Partidão. E também éramos muito críticos em relação à grande maioria das pessoas que estava ali na Folha, que eram ligadas a uma esquerda mais conservadora ou eram pessoas ultrapassadas, acomodadas.
Que tipo de sinalização você recebia do Otavio Frias Filho?
Eu acho que ele queria exatamente tirar da Ilustrada aquele ranço nacionalista e aquela despreocupação em relação ao mercado. O Leia, apesar de ter sido um jornal feito por pessoas de esquerda, estava literalmente pautado pelo mercado editorial. Era um jornal da editora Brasiliense e se preocupava em falar dos lançamentos, os de maior aceitação para o público e os mais importantes do ponto de vista intelectual. Eu dava os lançamentos quando eles aconteciam. Já a Ilustrada falava de um disco três meses depois de ter saído… Ao mesmo tempo que eu estava voltado para o mercado, estava voltado também para as questões intelectuais mais prementes e internacionais. Eu lembro de um almoço que tive com o Otavio.Foi ótimo, uma conversa estratégica muito boa. Ele reforçou toda a preocupação em relação aos critérios editoriais que eu usava na Ilustrada, mostrando que estávamos de acordo.
A preocupação técnica e empresarial do sr. Frias, de comprar máquinas novas, informatizar e aplicar controles sobre o processo de produção do jornal de certa forma migrou para a Redação quando o Otavio assumiu a direção? Você vê esse paralelismo?
Eu acho que o sr. Frias teve um papel importantíssimo nisso. O jornal tinha muitos erros. O jornal era mal escrito, mal revisado, malfeito. E isso gritava aos olhos. Principalmente quando você comparava com o Estadão, que era um jornal muito bem-feito, que tinha um padrão de qualidade muito maior. O que o sr. Frias dizia era o seguinte: nós precisamos fazer um jornal que tenha para o jornalismo a mesma qualidade que a Rede Globo tem para a televisão. Ele era muito impactado pela qualidade técnica da Rede Globo. E isso, de certa forma, se traduziu nas métricas, nas diversas medidas que o jornal passou a fazer, estatísticas sobre quantidade de erros, tamanho de textos, uso de fotos, quantos títulos por edição etc.
Isso também se consubstanciou no processo de avaliação dos jornalistas. Foi o primeiro jornal que implantou um processo sistemático de avaliação naqueles moldes. O Datafolha também se inscreve nesse contexto. A editoria de Esportes, por exemplo, passou a trabalhar muito com estatísticas. Houve até um exagero, a Folha virou uma espécie de refém das pesquisas.
O Cláudio Abramo achava aquilo ridículo, criticava muito. No meu livro sobre o trabalho de ombudsman, O Relógio de Pascal, faço uma piada com isso. Qual seria a manchete dos principais jornais se o mundo acabasse? A da Folha seria: “O mundo acaba; 50% da população discorda”. Mas havia contradições também, porque ao mesmo tempo que o discurso da Folha era de modernização, de critérios, de métricas etc., o jornal ainda guardava, e acho que ainda guarda, muita coisa arcaica. Mas o sr. Frias sempre teve um olho muito avançado. O Cláudio dizia que ele era um dos homens mais inteligentes que ele tinha conhecido. Eu acho que ele era um homem inteligentíssimo.
Após um ano na Ilustrada, você foi convidado para ser secretário de Redação. Por quê?
Pela coragem de mudar e renovar. E pela visão mais mercadológica. O sr. Frias dava muita força e pressionava muito no sentido de renovar. Ele queria que renovasse, renovasse, renovasse… Era o que eu estava fazendo. No caso da minha passagem para a Secretaria de Redação, tem um dado que eu acho importante. A Redação ia começar a ser informatizada e o jornal não poderia colocar, para comandar a informatização, um jornalista mais antigo, porque haveria reação. Mesmo se o sujeito estivesse a favor, não faria com o mesmo entusiasmo de um cara mais jovem. Tanto que a gente começou a informatização pela Ilustrada. Se não fosse a Ilustrada, o jornal não teria se informatizado tão rapidamente quanto se informatizou.
Naquele momento, em 1981, 1982, onde estava a Folha?
Era o segundo jornal de São Paulo. O grande jornal de São Paulo era o Estado. A grande frase do sr. Frias era que no Estado os oficiais eram melhores do que os donos. E ele achava que na Folha o dono era melhor do que os oficiais. Era uma frase que ele usava muito. E todo o esforço dele era para melhorar a oficialidade, os editores e jornalistas em geral. Ele achava a Redação pouco agressiva, pouco técnica e muito ideológica.
Um jatinho na mão e umas idéias na cabeça
Texto (abaixo) de Marcos Augusto Gonçalves sobre a renovação que foi feita na Ilustrada a partir de 1981, “Os menudos no poder”, no livro Pós-tudo – 50 anos de cultura na Ilustrada, de sua autoria, publicado pela Publifolha, São Paulo, em 2008, págs. 100 a 103.
Caio Túlio Costa foi o primeiro jornalista da geração de 77 a assumir um posto de comando na Folha. Formou-se pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, em 1979, e tinha 27 anos no final de 1981, quando foi convidado a pisar pela primeira vez na Redação de um grande jornal. Não sabia, na prática, como se produzia e fechava um caderno como a Ilustrada.
Pisar o quarto andar da Folha naquela época era uma experiência sensorial digna de nota. O chão era inteiramente revestido de pastilhas coloridas, material que também recobria as paredes e o teto do salão por onde se distribuíam as mesas dos jornalistas. Do alto pendiam os fios dos aparelhos telefônicos, que ainda eram pretos e pesados. Não havia ar-condicionado e ao fundo ouvia-se um ruído que já deixou de existir nas Redações – o bater das teclas das máquinas de datilografar.
No ano em que foi contratado, Caio lançou o livro O Que é Anarquismo, pela coleção Primeiros Passos, um estrondoso sucesso da editora Brasiliense, da qual Luiz Schwarcz era diretor editorial. Caio tinha um humor peculiar, temperado por uma desorientadora dose de cinismo. Era muito magro, gaguejava e mostrava vocação para organizar e comandar. “Sempre foi uma pessoa forte na operação. Nos jornais estudantis, ele era de fechar, de ir à gráfica, de olhar, de cobrar matéria’, recorda Matinas SuzukiJr.
Antes de chegar à Folha, ele trabalhava no jornal Leia Livros, uma publicação de resenhas e cultura ligada a Caio Graco Prado, o proprietário da Brasiliense. Cláudio Abramo era o secretário-geral do Leia. “Ele dizia que preferia o título de secretário-geral porque tinha dado certo no Vaticano e no Kremlin”, lembra Caio.
Os dois davam-se bem. O jovem jornalista admirava a altivez, a autoridade e o humor do secretário-geral, que o chamava de Túlio. Era influenciado por seu estilo e parecia gostar disso. Na Folha, havia ocasiões em que parodiava Cláudio, encenando alguma de suas idiossincrasias – como vetar fotografias de Pelé na primeira página.
Em 1980, no Leia, por sugestão de Cláudio, Caio propôs a Otavio Frias Filho que resenhasse um livro de Celso Lafer, Hannah Arendt: Pensamento, Persuasão e Poder, lançado em 1979, pela Paz e Terra. Foi atendido, e o texto, publicado. Otavio enviou a Caio um cartão de agradecimento. Ele tinha uma impressão distante, mas positiva do editor do Leia, e acreditava que um jornalista novo, vinculado à cena intelectual de sua geração, poderia fazer bem à Ilustrada.
Sem Tarso de Castro e no contexto que se seguiu ao caso Diaféria, o caderno, sob o comando de Helô Machado, trafegava regularmente pela faixa de artes e variedades. Fassoni, Jefferson del Rios e João Marcos Coelho permaneciam como críticos e Vladir Nader, escritor e fundador da revista Escrita, era redator. O jovem Gabriel Priolli fora convidado para escrever sobre TV, acentuando o anacronismo da coluna da veterana Helena Silveira; Francis e Flávio Rangel permaneciam lá, e a eles se reunia, por um breve período, o colunista Nelson Rodrigues, contratado por Boris Casoy.
Mas, nas palavras do próprio Boris, faltava alguma coisa: ”A Helô Machado era uma moça fashion, sem ideologia, que fechava o caderno. Mas o que era a Ilustrada? A Ilustrada não era cultural, tinha espasmos culturais, Tinha coisas mais intelectualizadas, mas vinha lá o cara de uma agência e vendia aquelas matérias sobre a história dos castelos da Inglaterra ou a moda do chapéu não-sei-o-quê, que começou na Suíça. Isso era assim, já vinha de antes, do próprio tempo do Cláudio, é o histórico, fazia parte do contexto daquele momento”.
Em questões políticas, Helô era uma exceção à regra que também fazia parte do “contexto daquele momento” a forte politização das Redações. De supostos ou verdadeiros agentes infiltrados da ditadura a jornalistas de esquerda de diversos matizes, o ambiente era atravessado por relações de atração e repulsa política. Conspirava-se e cochichava-se pelos cantos e corredores. Como dizia Paulo Francis, os jornalistas eram de esquerda “quase que por ofício”. Chegou-se a registrar, na Folha, reclamação pelo fato de a direção colocar lado a lado ou em posições de chefe e subordinado pessoas filiadas a partidos clandestinos inimigos ou que neles se encontravam hierarquicamente acima de seus superiores no jornal.
A escolha de Boris Casoy para substituir Cláudio Abramo teve o dom de unificar a esquerda na Redação, ao menos no primeiro diagnóstico. Ele estudara no Mackenzie, havia sido assessor de imprensa de Cirne de Lima, ministro da Agricultura de Médici, e teve seu nome citado pela revista O Cruzeiro como um dos possíveis membros do Comando de Caça aos Comunistas – o que sempre negou e desafiou que provassem. A dedução era óbvia: saía Cláudio, o herói da esquerda, enxotado pelos militares, e entrava o braço da direita, que implantaria uma nova linha na Folha, mais conservadora e oficialista.
Não foi o que aconteceu. A Folha contornou o risco maior e avançou,mostrando arrojo sem paralelo na campanha pelas Diretas, na passagem de 1983 para 1984. Não é de mais lembrar que se deveu a Boris (“embora digam que foi o Cláudio; o que não é verdade”, queixa-se ele) a contratação dos repórteres Clóvis Rossi e Ricardo Kotscho, símbolos do jornalismo político da redemocratização.
Em finais de 81, por sugestão de Otavio, Boris entrou em contato com Caio Túlio, convidou-o para uma conversa e propôs-lhe o cargo de editor da ilustrada.
A contratação representou um divisor de águas, o início de uma mudança importante na cobertura de cultura da Folha – e também os primeiros passos de uma trajetória que levaria o jornalista secretário de Redação, primeiro ombudsman da imprensa brasileira e executuvo responsável pela implantação do portal UOL, do qual foi diretor-geral.
No ano em que esteve sob sua direção, a Ilustrada tornou-se mais ágil, mais sintonizada com o mercado e mais atenta aos temas de relevância intelectual. “O Caio foi um cara que deu um rumo ao caderno. Eu senti que no comecinho ele estava um pouco perdido dentro da Redação e senti também que ele se deu bem comigo. A gente tinha uma afinidade, os dois são virginianos, a gente gostava de ser virginiano… Eu, na verdade, tô cagando para isso, mas era legal a nossa relação”, lembra Angeli.
Uma das pessoas que ajudou Caio a se encontrar na Redação. da Ilustrada foi o diagramador Jair de Oliveira, que todos considerávamos, durante anos, o verdadeiro editor do caderno, pois dominava todas as rotinas, reclamava e dava ordens – só faltava demitir quem ele achava que não servia.
Caio levou para a editoria alguns amigos da ECA e da Libelu: Mario Sergio Conti (que já estava na Folha como setorista da Câmara Municipal e assumiu o Folhetim, que passou à esfera da Ilustrada), Matinas Suzuki Jr., Renata Rangel e Rodrigo Naves (que substituiu Conti no Folhetim quando Caio já deixava a editoria).
O repórter Antonio Gonçalves Filho tinha chegado pouco tempo antes, assim como Miguel de Almeida, um nome assíduo e polêmico da reportagem. Havia ainda Sérgio Augusto, contratado por Boris, e Tarso, que voltara a atacar como colunista, obtendo logo grande repercussão.
O espaço de Tarso na página 2 atraía muitas atenções, e ele, embora lido pela Direção do jornal, gozava de ampla liberdade. Com frequência, aliás, publicava comentários sobre a própria Ilustrada, elogiava e criticava artigos, falava bem ou mal do editor ou mandava recados para um colega colunista. Foi o caso, por exemplo, de Miguel de Almeida, que, em 1983, estreou como titular de uma coluna chamada Painel da Ilustrada.
Era uma “tripa”, no alto da página 2, entre as colunas de Tavares de Miranda e Tarso. É fato que, logo no primeiro dia, Miguel, ao saudar os leitores, provocou: “Muito prazer: aqui estou eu. À direita, Tarso de Castro. À esquerda, Tavares de Miranda”. No dia seguinte, no pé de sua coluna, Tarso publicou uma nota: “Viver em cidade grande tem um problema: não se pode escolher vizinho. Viver em página de jornal, pasmem, é a mesma coisa. Sorry”.
Em 82, juntou-se a esse animado clube um outro estudante da ECA, que havia passado ao largo da agitação estudantil. Seu nome era Petrônio Flávio Escobar França de Andrade. Foi contratado ao responder a um anúncio para redator e tradutor. Ficaria famoso como Pepe Escobar, o jornalista que levou para a área pop da Ilustrada um tipo de crítica sofisticada, idiossincrática, anglófila e “pós-moderna’, que se tornou marca registrada do caderno. Algo desse espírito de Pepe apareceu em críticos que vieram depois, como Álvaro Pereira Jr. e André Forastieri (do Folhateen, mas também colaboradores da Ilustrada), Lúcio Ribeiro, e mesmo Luís Antônio Giron e Pedro Alexandre Sanches – mais ligados à música popular brasileira. Giron, em 1985, assinou uma crítica à pianista Magdalena Tagliaferro que causou polêmica. João Marcos Coelho, crítico de jazz e de música erudita da Ilustrada, diz que ficou “puto” com o autor – de quem, segundo ele, veio a se tornar amigo. Até um abaixo-assinado foi organizado em defesa da veterana pianista. “Acho que foi o único manifesto que o Eleazar de Carvalho e o Isaac Karabtchevsky, que eram jurados de morte, assinaram juntos”, diz João Marcos. Ele conversou com o secretário de Redação, Caio Túlio Costa, sobre o assunto, e pediu demissão: “A Magdalena pode ter um infarto, morrer, se ela ler essa crítica, eu disse ao Caio. E ele me respondeu que se isso acontecesse ele daria na Primeira Página. Eu falei que não escrevia mais e fui embora”.
Naqueles anos, ao mesmo tempo em que a Folha continuava atraindo jornalistas reconhecidos, começava um forte movimento de renovação de quadros, que em poucos anos derrubaria a faixa etária da Redação, mudaria seu perfil sociológico e levaria a postos de chefia jovens profissionais ambiciosos, com o característico “drive” da militância, que encontrariam surpreendente liberdade para propor e imprimir suas ideias na Folha. Como diz Pepe Escobar, 25 anos depois, referindo-se à Ilustrada, “tínhamos um jatinho nas mãos e podíamos pilotá-lo”.
É verdade que as condições para voar eram muitas vezes ruins e havia pressa, impaciência e cobrança. A própria direção da Folha referia-se à rotina da Redação como “um Vietnã”. Nem todos suportavam o ritmo, muitos às voltas com tarefas para as quais não haviam sido preparados. A rotatividade naqueles anos tornou-se vertiginosa, como mostram números reunidos no livro Mil Dias (Publifolha, 2005), de Carlos Eduardo Lins da Silva, que fez dupla com Caio Túlio na Secretaria de Redação e participou de perto da implantação do chamado Projeto Folha. Em 1984,116 jornalistas (32%) foram demitidos ou pediram demissão do jornal. Em 1985, foram 142 (44%); e em 1986, 187 (55%). Nesse processo, os proprietários da Folha decidiram reinvestir na Folha da Tarde, que ganhara fama de reduto de jornalistas ligados aos porões da ditadura. Coube a Adilson Laranjeira comandar a renovação do jornal. que absorveu nomes da Folha, como o crítico Orlando Fassoni.
A renovação não visava apenas afastar da Redação, como sugerem alguns, os jornalistas cuja atuação política parecia deletéria à cúpula do jornal. O objetivo maior, estratégico, era trocar o software, levar para a Folha gente com olhos voltados para o futuro e com novas referências, fosse de esquerda ou não. A maioria, sem dúvida, continuou sendo (o PT, como se sabe, angariou muitas simpatias entre jovens jornalistas a partir de sua fundação, em 1980). Leão Serva, que foi um criativo pauteiro e dinâmico editor-assistente da Ilustrada (posteriormente, secretário de Redação), lembra ter sido convidado, no final de 1982, para uma reunião com o intuito de levantar novos nomes:
“O Matinas me encontrou no Natal de 82 e me disse que o Otavio queria fazer uma reunião e que meu nome estava incluído. O André Singer era o editor de Artigos e Eventos, e eles, Otavio e André, acho que juntamente com o Caio e o Matinas, tiveram a ideia de fazer uma puta seção de livros. E queriam pegar o pessoal da geração deles, alguns até um pouco mais novos, que estavam saindo da faculdade. A reunião foi no auditório da Folha. Não lembro de todos, mas estavam lá a Sonia Mindlin, o Gesner de Oliveira Sobrinho, o Durval. Figueira Filho, hoje advogado, e o Luís Francisco Carvalho Filho, também advogado, que já era colaborador”.
Naquele mesmo final de 1982, Caio deixava a Ilustrada para assumir a Secretaria de Redação. Tinha pela frente um projeto estratégico: a informatização do jornal, que modificaria todo seu fluxo produtivo. E a mudança começaria justamente pela Ilustrada. Vivia-se a pré-história da era digital e as dificuldades foram tremendas. Os fechamentos atrasavam e as edições saíam com muitos erros (sim, ainda é assim, mas foi muito pior). No andar de baixo, sobrevivia o “paste up”, seção fordiana onde as páginas eram montadas sobre pranchas, na base da cola e do estilete. Editores e assistentes desciam depois do fechamento para tentar sanar, na última hora, algum dos muitos problemas que certamente haviam passado.
Matinas, naturalmente, substituiu Caio no comando da Ilustrada, e Renata Rangel tornou-se sua sub. Ele assumiu no início de 1983. Foi o grande editor de cultura, o mais imaginativo, ambicioso e antenado de todos, naqueles anos vertiginosos em que a Folha despontou como a grande novidade da imprensa brasileira e a Ilustrada como o caderno mais lido, amado e odiado do país.
No final de 83, por indicação de Rodrigo Naves, ele me convenceu a deixar o Rio para ser seu editor-assistente, cargo que assumi em fevereiro de 1984. Eu o havia conhecido – juntamente com Caio e Rodrigo Naves – no segundo semestre de 1977, quando participávamos das discussões para a criação de um jornal alternativo intitulado Beijo, uma articulação de Julio Cesar Montenegro, o ex-editor de cultura da última fase do jornal Opinião, que tinha fechado as portas em abril daquele ano.
O Beijo funcionava de maneira peculiar, na linha da autogestão: todas as 40 pessoas que se cotizaram e venderam assinaturas para iniciar o jornal apareciam no expediente como diretores. Ninguém ganhava nada e tudo era discutido e resolvido em reuniões infindáveis. Durou seis números.
Direta ou indiretamente, os antigos colaboradores do Opinião e os recém-chegados ao Beijo influenciaram a Ilustrada. Para citar alguns deles, além de Caio, Matinas e Rodrigo: o sociólogo Gilberto Felisberto Vasconcellos (que foi editorialista da Folha e colunista da Ilustrada), os críticos de cinema Jean-Claude Bernadet e Sérgio Augusto, o jornalista Wilson Coutinho (que posteriormente foi repórter e crítico de arte da Ilustrada), a poeta Ana Cristina Cesar, o professor e poeta Cacaso, o crítico de arte Ronaldo Brito, o artista Waltercio Caldas, os ensaístas Laymert Garcia dos Santos e Stella Senra, além de um tipo ímpar, egresso da luta armada, o sociólogo Fernandinho Mesquita – que também escrevia numa revista alternativa dessa área, chamada Cine Olho.
“Essa turma tinha uma reflexão sobre jornalismo cultural” diz Matinas. Nessa reflexão, era corrente a ideia de que a intervenção no plano da linguagem poderia ser mais interessante e subversiva do que a simples explicitação de conteúdos políticos em formatos consagrados. Nessa linha, o pessoal do Beijo mantinha uma relação lúdica com os elementos da linguagem jornalística, como uma maneira de relativizar e “denunciar” os mecanismos que confeririam objetividade e verdade ao conteúdo da imprensa. Isso se traduzia, por exemplo, na autonomia da informação visual em relação à textual, na diagramação heterodoxa, na seleção de títulos e na própria feitura dos artigos.
Na verdade, o pessoal da ECA, que fora vanguarda na greve de 1975, já havia exercitado muitas dessas ideias num incrível jornal estudantil chamado Avesso. Um de seus números mais interessantes trazia uma enorme fotografia de Mao Tsé-Tung e versos de “Uma Estadia no Inferno”, de Rimbaud [na realidade, eram versos de Pablo Neruda]. Era uma crítica ao culto à personalidade, mas desavisados viram um sinal de que o movimento estudantil estava se radicalizando em direção ao maoísmo.
Um dos editores do Avesso, Rodrigo Naves, levou ao Folhetim algumas dessas características – não por acaso ele lembra com especial carinho de um número do suplemento cujo tema de capa era o falso [ver página 252 do livro].
Entre 1984 e 1987, Matinas e eu nos revezamos como editores da Ilustrada. Ele passou um período dirigindo a Sucursal do Rio e eu, trabalhando na reportagem. lnácio Araujo veio a se reunir aos “300 críticos de cinema” que existiam na Redação da Folha (na boutade de Paulo Francis) e também Leon Cakoff (que o mesmo Francis chamava de Boris Karloff). Ruy Castro e Leão Serva já haviam sido contratados em 1983 – Leão, curiosamente, para substituir Geraldo Leite, do grupo Premeditando o Breque, que assinava uma coluna sobre rádio. Ele era, em seus 24 anos, mais um dos garotos dinâmicos que chegavam à Barão de Limeira. Andréa Fornes, Renata Lo Prete, Lilian Pacce e Márion Strecker Gomes eram algumas das garotas. Andréa foi redatora, repórter e editora-assistente da Ilustrada. Renata se tornou ombudsman e uma grande jornalista política. Lilian começou como assistente de Tarso de Castro em sua coluna e depois se transformou numa grande estrela do jornalismo de moda. Márion, que foi crítica de arte, nos sucedeu como editora do caderno em 1988. Ocupou diversos cargos na Folha e depois migrou para a área digital, tornando-se diretora de conteúdo do UOL.
Em 1984, quando Otavio Frias Filho deixou o Conselho Editorial e assumiu a direção de Redação, a piada estava pronta: passamos a ser chamados de Menudos pelos jornalistas mais rodados. Os Menudos fizeram boas piruetas com o jatinho que tinham nas mãos. E elas não tardaram a chamar a atenção. Em setembro de 1985, a revista Veja São Paulo dedicou sua capa ao êxito da Folha e tratou a Ilustrada como “um capítulo à parte”. Na reportagem, Matinas dizia ao jornalista Roberto Pompeu de Toledo que o caderno se dirigia “sobretudo aos jovens” e afirmava que São Paulo estava se tornando “a vanguarda cultural do país”.
*As observações entre colchetes são de CTC.