Em setembro de 1953 o papa Pio 12 recusou-se a receber Jacques Lacan no Vaticano, Ele havia dito que “o inconsciente é estruturado como linguagem”. Um pouco antes, Roland Barthes tinha denunciado, por antecipação, a emergência “de um estado absolutamente homogêneo da sociedade”. Um ano depois, Raymond Aron dava à luz “a essência do totalitarismo” e Françoise Sagan escandalizava com Bom dia tristeza. Em maio de 1968 Jean-Paul Sartre era vaiado pelos estudantes na Sorbonne: “seja breve”. Em Cannes, Jean-Luc Godard se pendurava nas cortinas do palácio do festival e interrompia o festival de cinema junto com François Truffaut, Claude Lelouch e Louis Malle.
Sartre, Aron, Foucault, Lacan, Godard, Camus… Você sabe bem a influência que estes intelectuais franceses exerceram nos seus tempos e além de suas fronteiras. Lacan, por exemplo, não linha escrúpulos em sapatear sobre um opúsculo do obscuro Jean-François Revel, em 1957, que criticava a fraqueza da filosofia universitária tradicional e o “impasse” em que estariam afundados os novos mitos do pensamento; Maurice Merleau-Ponty, l.évi-Strauss e o próprio Lacan. O Freud francês reduziu a pó o Por que Filósofos? de Revel, então com 33 anos, agora careca e com aparência e espírito de açougueiro.
Sem debate
Hoje ninguém tem peito para entrar de cara no livro O Conhecimento Inútil de Revel. A França se perde nas discussões sobre a falta do debate intelectual, da homogeneização da cultura e da falta de participação da “intelligentsia” na questão pública. Alain Finkielkraut, um dos novos dos quais se editam livros, já reconheceu, em entrevista à Folha, que perdeu a batalha da recuperação do sentido puro do termo cultura. Uma das melhores cabeças pensantes do país, como, Jean Baudrillard, é talvez o único que hoje tenha alguma influência, mas lá fora. Ele só tem aberturara para reflexão fora do hexágono (ver texto abaixo).
Onde estão os intelectuais franceses? Que poder eles exercem atualmente? Apesar da inflação de nomes eles praticamente acabaram. Mais grave, os que existem exercem influência nula. Não há nostalgia que revigore o furor intelectual das décadas de 1950 e 1960. A de 1970 começou sob o signo de “Marx morreu”, de um ex-aluno de Lévi-Strauss, o “novo filósofo” Jean-Marie Benoist, hoje presidente do Club 89, uma entidade próxima do partido neo-gaulista, o Reunião Pela República, de Jacques Chirac. A década de 1980 inventou a comemoração espetacular e deixou de lado a critica.
Sim, Marx está morto, Freud também e os intelectuais franceses não se sentem lá muito bem, para parodiar um deles. Não é exagero afirmar que nenhum dos vivos consegue um centésimo do eco alcançado em épocas passadas por um capiau do tipo de Luis Aragon, para ficar num dos nomes menos nobres.
Seria besteira desconhecer, no entanto, a importância de um Jacques Derrida, por exemplo. Só que não dá entrevistas, recusa-se a aparecer nas televisões e publica muito pouco. Ele mesmo impede a mensuração do alcance imediato de seu pensamento. Não é que os intelectuais franceses sejam preguiçosos como se diz do povo do nariz comprido. Na realidade, a profecia de Roland Barthes os pegou pelo cangote e os reduziu inconscientemente ao fracasso em detrimento da mídia e apesar da mídia.
Tartaruga
Veja o resultado de uma pesquisa feita entre 400 sujeitos pensantes. Uma publicação franco-atiradora de esquerda, a revista semanal “L’Evenement du Jeudi”. datada da primeira semana deste mês [fevereiro de 1989], mandou cartas para professores, escritores. jornalistas, editores, artistas… pediu que apontassem os nomes de cinco intelectuais vivos que “encarnassem o poder intelectual”. Qual a surpresa. Em primeiro lugar empataram o octogenário Claude Lévi-8trauss, mais recluso das lides atuais do que tartaruga com a cabeça recolhida, e a estrelíssima dos programas de livros na televisão, Bernard Pivot, 53 anos, um tipo que se especializou em mostrar, e bem, as idéias dos outros. Ora, dizer que Lévi-Strauss e Pivot têm poder intelectual na França equivale à afirmação de que Austregésilo de Athayde e Cid Moreira estão na ponta do poder intelectual no Brasil.
François Furet, um ex-economista, hoje com pinta de liberal, está em segundo lugar. Ele entrou na lista à custa da Revolução Francesa. Estabeleceu a primeira versão critica do revolução que foge aos cânones empoeirados do marxismo de Albert Soboul. Mas Furet surge agora não por causa de sua intervenção no debate quente, mas pejo “repensar” a história. Não há dúvida de que as comemorações do bicentenário levarão seu nome para além das fronteiras da estreita Marianne, Mas, atenção, a sua reputação está instalada no confortável saber instituído, sólido como os documentos tratados a óleo de peroba pelos faxineiros do saber petrificado.
Em terceiro lugar a lista crava Pierra Nora, Talvez vinte brasileiros e cem franceses saibam quem é ele. Não importa. É uma das escolhas relativamente certas. Relativa porque Nora é do tipo que influencia por trás, eminência parda, não exerce poder direto, através de artigos na imprensa, por exemplo. Se, em 1974, Sartre prestava contas através da imprensa de suas impressões de viagem à URSS (“antes de 1966, se a França continua a estagnar, o nível de vida médio na URSS será de 30 a 40 por cento superior ao nosso”) e era refutado com dureza pelos coleguinhas Merleau-Ponty e Claude Lefort, o atual Nora se contenta em lembrar que foi ele mesmo quem empurrou Foucault para escrever As Palavras e as Coisas (cujo primeiro capítulo, reza a lenda, foi encomendado depois porque Nora queria uma introdução “fácil” para vender melhor o livro). Sim. Nora anima a revista mensal de maior tiragem entre as ditas cultas, a “Le Debat”. Ela está milhares de anos-luz atrás da repercussão intelectual da “Les Temps Modernes” dos anos 1950. Justiça seja feita, foi Nora quem inventou tanto Gilles Lipovetsky. o sociólogo do efêmero, quanto o seu contrário, Alain Finkielkraut, que tentou botar logo no vazio do cotidiano, mas riscou fósforos molhados.
Angelo Rinaldi desponta em quarto lugar. Crítico literário, dos médios, como a maioria da categoria, Rinaldi escreve regularmente no semanário “L’Express”. Nunca fez nem desfez reputações. Uma coisa é certa, ao balbuciar o nome de um autor, Bernard Pivot vende mais livros do que Rinaldi leu em toda a sua vida, e ele lê muito.
Pierre Boulez, o maestro-compositor, vem em quinto lugar, coisa estranha. O filósofo romeno E.M. Cioran, que reside na França, está em sexto. Há dois anos, pelo menos, que não se vê intervenção digna de nota de Cioran, mesmo e apegar de sua reputação ilibada. O presidente François Mitterrand [então presidente da República] aparece em sétimo lugar entre os influenciadores. Ninguém duvida de seus méritos de estrategista político, mas o escritor Mitterrand estacionou no barroco e sua influência se situa além do espiritual mundo das idéias. Os nomes dos que estão em oitavo, nono e décimo lugar são muitos (há oito nomes em oitavo lugar, por exemplo) e incluem cabeças tão competentes, como a do cineasta Jean-Luc Godard, que é suíço, quanto a de um Jean Baudrillard, como outras embrutecidas pelos símbolos, como a de Pierre Bourdieu.
Pela relação e pelos dois nomes empatados em primeiro lugar se conclui a acefalia de um poder com capacidade de intervenção intelectual na França. Precavido, Bernard Pivot diz não “poder aceitar que, por uma velha perversidade, mais uma vez se confunda criação e mediação”. Contesta a lista dizendo que o “poder pertence àqueles que têm as respostas, não àqueles que colocam questões”. Um dos homens que já teve muitas respostas – pelo menos relativas ao uso de badulaques dos índios: colocar em museu -, Claude Lévi-Strauss, reage com bonomia: “não tenho nenhum poder intelectual. Tenho 80 anos, pertenço a outro século. No fundo se é meu nome que aparece o mais freqüentemente é porque eu incomodo menos”. Tem razão.
Ironia da história, em 1981 a revista de livros de Bernard Pivot fez a mesma pesquisa entre 700 intelectuais e Lévi-Strauss chegava também em primeiro lugar [1. Levy-Strauss – 2. Raymond Aron – 3. Michel Foucault – 4. Jacques Lacan – 5. Simone de Beauvoir – 6. Marguerite Yourcenar – 7. Fernand Braudel – 8. Michel Tournier – 9. Bernard-Henri Levy – 10. Henri Michoux – 11. François Jacob – 12. Samuel Beckett – 13. Emmanuel Le Roy Lodurie – 14. Rene Girard – 15. Louis Aragon]. Das 15 personalidades, oito já morreram: Aron, Foucault, Lacan, Braudel, Simone de Beauvoir, Yourcenar, Michaux e Aragon.
A década de 1980 iniciou-se com a eleição da primeira mulher, Marguerite Yourcenar, à Academia Francesa. Em 1981 Claude Lefort anunciava, também extemporaneamente, numa revista (a “Libre”), que toda a política dos direitos do homem supõe a ruptura com a ideologia marxista. As ideologias foram para as cucuias e a falência dos métodos confundiu a maioria.
De esquerda, direita, centrados ou descentrados, os intelectuais franceses de hoje em dia não influenciam e vivem à sombra do poder de seus precedentes. Lévi-Strauss, num momento de lucidez absoluta, vai ao ponto em declaração à revista que fez a pesquisa: “Pivot e eu na lista de sua enquete sobre o poder intelectual? O meio e a mensagem chegam em igualdade. É lógico e já estava em McLuhan.”
Jean Baudrillard é o único que critica o bicentenário da Revolução
A falta de participação critica nos debates intelectuais na França é tão dramática que a intervenção mais lúcida sobre as comemorações do bicentenário da Revolução Francesa foi publicada fora do país, assinada por Jean Baudrillard. Ele é um dos poucos pensadores que não foram engolidos pela trituradora máquina reducionista e não se deixaram levar pelos faustos da memória da revolução.
Atacando com virulência a “simulação francesa”, Baudrillard disse mais sobre este bicentenário em 60 linhas do que as pilhas de livros que saíram este ano. Ele introduziu um fascículo especial sobre o evento, publicado em janeiro pelo semanário italiano “L’Expresso”. Acha que o socialismo francês, “longe de projeta-se no futuro, dedica todos os seus esforços à comemoração.”
Baudrillard rasga uma ferida profunda: “Todos os grandes projetos deste regime são mausoléus, quase monumentos fúnebres: a pirâmide do Louvre, o grande arco de La Défense…” indica que a França renunciou A exposição universal de 1989, em París, “o que seria pelo menos um acontecimento moderno e vital” e no seu lugar construiu um novo teatro de ópera na praça da fortaleza da Bastilha, tomada na revolução. “Reabilitação ridícula: está certo que o povo não deve mais tomá-la de assalto, dois séculos depois lhe será servida música real”. Ele não agüenta: “Esta ópera da Bastilha é um projeto de esquerda, mas na realidade é um magnífico monumento fúnebre à revolução”. Acrescenta – com razão – que a arquitetura é “horrenda”.
“Bola de retórica”
Ele também não suporta o fato do historiador François Furet ter eliminado do seu Dicionário Crítico da Revolução” (Flammarion) o verbete sobre Saint-Just (1767-1794) “com o pretexto de que Saint-Just não era mais do que uma bola de retórica”, Louis Saint-Just desafia os historiadores que patinam entre defini-lo como “arcanjo do terror” ou “monstro sanguinário” e nâo concordam ainda se ele foi um “teórico lúcido” ou autor de “projetos ridículos que ficavam em Esparta quando se entrava na era industrial”, conforme Jean-François Fayarad. Na sua crítica, Baudrillard sustenta que os historiadores estão soterrando a história e os políticos soterrando a política enquanto os cidadãos conservam para si a nostalgia do Evento (com “e” maiúsculo) e da Glória (“g” maiúsculo).
François Furei foi alçado este ano à condição de “rei” da revolução. Ironia, ele pertenceu exatamente à célula Saint-Just do Partido Comunista Francês, nos anos 1950. Em 1982 foi para a presidência da Fundação Saint-Simon e em 1984 assumiu a direção do Instituto Raymond Aron, um dos papas do liberalismo francês. Depois de se ajoelhar aos pés de Stalin, e1e recentrou a cabeça e vírou uma quase unanimidade nacional.
Até agora, somente Baudrillard se atreveu a atacar o sacrossanto Dicionário Crítico da Revolução, que tem tradução prevista no Brasil, aos cuidados da Nova Fronteira. Mas a crítica de Baudrillard saiu na imprensa italiana. Seu poder de fogo é reduzido, o que reduz também a influência de Baudrillard. O calendário das comemorações do bicentenário inclui o enterro da imprensa francesa.
Publicado na Ilustrada, da Folha de S. Paulo, em 26/2/1989.