Artigo (que, em parte, é um excerto do capítulo “Relativismos”, de Ética, Jornalismo e Nova Mídia – Uma Moral Provisória, Zahar, 2009) publicado no livro Do Broadcast ao Socialcast, recém publicado pela revista Bites e disponível para donwload (clique aqui para baixar).
Caio Túlio Costa
A realidade da esfera pública suporta que qualquer indivíduo (solitário ou investido do poder de instituições) exerça um papel relevante na nova mídia. O jornalista deixou de ser o principal instrumento mediador da representação das representações. Menos pelos aspectos relativos e mais pelo desenvolvimento da técnica que transformou a comunicação em algo bi-direcional, interativo, multidirecional, participativo. As representações, individuais ou institucionais, emergem por si mesmas na mídia, sem dependência do jornalista, apesar de ele continuar existindo,
continuar representando as diferentes representações e continuar a defender o uso de meios moralmente condenáveis na busca da informação que ele considere de interesse público – porque a definição do que é de interesse público também pode ser contraditada, relativizada. A diferença em relação aos tempos tradicionais: um site universitário pode ser tão ou mais determinante na difusão de informação quanto um blog (seja de um jornalista, seja de um especialista, seja de um amador) ou um site noticioso que emule a mídia tradicional em comparação com o poder de difusão da informação da própria mídia na sua forma clássica.
Yochai Benkler, no livro no qual dialoga com Adam Smith e cujo título The wealth of networks (A riqueza das redes) parafraseia o clássico The wealth of nations (A riqueza das nações, de Adam Smith, o papa do livre mercado), considera que a comunicação em rede desafia o clássico modelo industrial da modernidade por estar centrada num modelo de cooperação e compartilhamento de informação e conhecimento. Portanto, desafia o entendimento clássico de indústria cultural conforme estabelecido pelos teóricos da Escola de Frankfurt, Theodor Adorno e Max Horkheimer. Se há cooperação e compartilhamento então se mitigaria a questão da assimetria e esse modelo, se Benkler estiver certo, colocaria além das corporações e das empresas de mídia a decisão até então unilateral sobre tudo que envolver problemas morais na publicação de fatos, informações, notícias. Para ele, as companhias de comunicação não estão mais sozinhas à frente da publicação de notícia, opinião ou da administração do entretenimento; qualquer um pode estar.
Otimista, Benkler abre o livro, publicado em 2006, discorrendo sobre a oportunidade histórica que a humanidade tem nos próximos anos no sentido de transformar para melhor a vida no planeta. No livro Conectado, em bom português, Juliano Spyer resume muito bem os pressupostos de Benkler:
“1. A maneira como cultura e conhecimento são produzidos e trocados afeta a maneira pela qual a sociedade enxerga o mundo como ele é e como ele pode ser; afeta quem decide sobre estas questões em determinado momento; e afeta como a sociedade e o governo percebem o que pode ser feito a esse respeito;
“2. por 150 anos, as democracias complexas modernas dependeram da indústria para produzir e fazer circular informação e conhecimento. Mas nos últimos 15 anos, mudanças tecnológicas aumentaram a participação da produção não-proprietária e não-comercial, permitindo que indivíduos assumam papéis mais ativos do que era possível no modelo industrial. A nova condição do indivíduo pode ser uma plataforma para cultivar uma cultura mais crítica e auto-reflexiva, aprofundar a participação democrática e trazer melhoras no desenvolvimento humano em nível mundial. Mas isso dependerá da superação de um desafio;
“3. o crescimento da força de produção e de circulação da informação e da cultura, pelo indivíduo e de maneira colaborativa, fora da economia de mercado, ameaça aqueles que se beneficiam com a economia informacional de caráter industrial. Nos próximos dez anos [até 2016] será decidido qual dos dois modelos prevalecerá, tendo uma implicação em como ficaremos sabendo do que acontece no mundo e de qual maneira poderemos influenciar como vemos o mundo hoje e como ele pode ser no futuro.”
Para Benkler, ainda com a ajuda de Spyer, informação, cultura e conhecimento continuam percebidos pela sociedade como produtos nãorivais. A competitividade teria fortalecido a sociedade ao promover o desenvolvimento de uma economia centrada na produção de informação e cultura e na manipulação de símbolos. Teria erigido um ambiente de comunicação constituído a partir de chips baratos com grande capacidade de processamento. Esse barateamento tornou a comunicação uma tecnologia cada vez mais acessível. As mudanças teriam criado então a “economia informacional em rede”, cuja ponta está na Internet e em qualquer tecnologia que coloque pessoas em interação.
As mudanças no comportamento dos consumidores por conta das facilidades tecnológicas compõem a visão de que se chegou finalmente a um mundo convergente e interativo. Há a proliferação do conteúdo e ela é assimétrica. A audiência se fragmentou. A programação da televisão, da internet, também se fragmentou. O público tem acesso a múltiplas plataformas. A publicidade se move para alvos cada vez mais definidos. As fronteiras clássicas da cadeia de comunicação são continuamente desafiadas e até os “valores” de mercado na indústria da comunicação se eslocaram. A captura e a própria manutenção do controle da informação tornou-se crítica para essa indústria. Para o indivíduo que virou protagonista de um vídeo de sucesso instantâneo e mundial baseado na captura de imagens de uma celebridade, é relativo se aquilo foi capturado e publicado de forma legal ou ilegal – a rede desmantelou a forma clássica de se entender o que é legalidade.
As individualidades próprias, institucionais, empresariais, fazem parte da rede mundial de informações. A preocupação ética, deontológica, se existe formalmente e normativamente nas instruções da mídia tradicional, inexiste em inúmeras de suas práticas. Dependendo da situação, pode existir ou não. As empresas de mídia manejam com hipocrisia o uso das palavras normas, ética e moral. A própria preocupação moral se relativiza mais facilmente neste novo sistema – seja pela falta de experiência dos seus novos atores (indivíduos sem formação técnica em
comunicação), seja pelo derretimento de valores sólidos ou ainda pela própria mimetização da relativização operada pela mídia tradicional. Os códigos morais são provisórios, são temporários, valem de formas distintas e a depender de cada situação.
Além disso, as novas mídias somam idealmente preocupações éticas (normativas) às que já existiam em relação à própria mídia e trazem novos problemas por conta da sua extensão, simultaneidade e possibilidade de unir numa mesma plataforma de comunicação as linguagens da comunicação (texto + imagem + voz, além do movimento) e acrescentar a interatividade, seu maior diferencial. A nova realidade introduziu uma complexidade ética à qual o mercado e as instituições ainda não deram conta.
Caio Túlio Costa é jornalista, professor de Ética Jornalística na Faculdade Cásper Líbero de São Paulo, doutor em Ciências da Comunicação pela ECA-USP e foi o primeiro Ombudsman da imprensa brasileira.