Publicado no G1 em 12/05/2009 às 00:24
Luciano Trigo
Não apenas aos profissionais da Comunicação é recomendada a leitura de Ética, jornalismo e nova mídia – Uma moral provisória, de Caio Túlio Costa (Zahar, 288 pgs. R$39,90). Também – e talvez sobretudo – o leitor comum terá muito a aprender com esse ambicioso ensaio, que busca na Filosofia e na História elementos para compreender a atividade jornalística tal como ela se dá na vida real. É este leitor, afinal de contas, que consome, muitas vezes de forma acrítica, os noticiários impressos ou televisionados; é ele que determina, em última análise, as decisões de quem depende de público para sobreviver; é a ele, por fim, que a Constituição garante o direito, nem sempre respeitado, à informação de qualidade. Essa dupla natureza dos veículos de comunicação – negócio e serviço público – está na raiz de muitos dilemas enfrentados no dia-a-dia das redações. Com uma longa experiência na área, Caio admite que o jornalismo real sempre estará inevitavelmente distante dos postulados teóricos da verdade, da neutralidade e da justiça que se ensinam nas universidades. Mas nem por isso se deve abrir mão da permanente preocupação ética no exercício da profissão. Sobretudo num momento em que inovações tecnológicas criam formas inéditas de se produzir – e de se consumir – a notícia.
G1: A convergência tecnológica traz novas formas de se fazer e de se consumir jornalismo. Que impacto esse processo pode ter na sociedade e que desafios ele apresenta aos profissionais da Comunicação?
CAIO TÚLIO COSTA: Ela traz novas formas dentro de um ambiente de mudança revolucionária porque facilita a interatividade e a possibilidade de qualquer um – indivíduo, instituição, empresa ou corporação – produzir informação e dispô-la em rede mundial. Essa nova forma de comunicação provoca problemas – sejam éticos, regulatórios, legais ou institucionais. A sociedade reage por meio de suas instâncias. O Legislativo começa a produzir leis para controlar esse novo ambiente. A Justiça erra e acerta em julgamentos e com isso começa a criar jurisprudência, por exemplo, e os profissionais de Comunicação aderem ao novo modelo – blogs, sites, participação ativa em redes sociais – ou reagem contra explorando as “deficiências” do novo meio – mas a indústria da Comunicação nunca discutiu tanto quanto discute agora a emergência das novas mídias e a necessidade de entendê-la para transformá-la em negócio.
G1: A imprensa chegou tardiamente ao Brasil, e sua história foi marcada por relações perigosas com o poder, e não apenas nos períodos autoritários – como revela, por exemplo, a leitura das memórias de Samuel Wainer, ou da biografia de Assis Chateaubriand. Essas especificidades tornam a imprensa brasileira mais vulnerável a deslizes éticos?
CAIO: Não diria que a imprensa chegou tardiamente ao Brasil porque ela chegou com a vinda de D.João VI , por volta de 1808. Ou seja, ela chegou no Brasil antes de ganhar escala na Europa e nos EUA. Chegou junto com a formação da industria da Comunicação de massa. Os jornais ganharam escala, e relevância enquanto indústria da Comunicação, na primeira metade do século XIX. As relações perigosas da imprensa com o poder não são um “privilégio” nosso e nem têm a ver com a idade desta indústria. Essas relações são perigosas em todos os países, sejam eles democráticos ou autocráticos. Como sempre, há exceções – mas poder e imprensa sempre viveram relações complexas e de mútua dependência. A questão ética não é diferente para a imprensa brasileira e para a imprensa em outros países. Ela é uma só.
G1: Estruturada desde sempre como negócio, portanto dependente do lucro e dos anunciantes, a comunicação deve atender também ao interesse público, até por previsão constitucional. Como resolver esse dilema?
CAIO: Não há como resolvê-lo – há que se conviver com ele e com sua realidade paradoxal. É isso o que faz a imprensa. Ela diz agir em nome do interesse público, normativamente, mas vai levar em conta os interesses próprios em primeiro lugar, funcionalmente. Não há como ser diferente. E o que é interesse público? Eu problematizo essa definição.
G1: Como você analisa o debate sobre a criação de um Conselho Federal de Jornalismo, idéia que foi muito mal recebida pela classe, apesar de defendida pela Fenaj? Que riscos e benefícios ele representaria?
CAIO: Da maneira como se apresentou no Brasil, a idéia sugeria uma possibilidade muito concreta de controle absoluto, censura, manipulação corporativa. Não há como fugir da fúria legisferante – nem dos impostos e nem da morte, como já disse um Presidente americano. A grande questão é o excesso de regulamentação e as forças e fraquezas que lobbies empresariais, corporativos e políticos possam ter na regulamentação. Uma auto-regulamentação que levasse em conta os diferentes interesses, de forma equilibrada, seria muito bem-vinda. Mas é muito difícil equilibrar essas forças. Ou seja, ainda bem que essa idéia de Conselho Federal do Jornalismo sumiu do mapa.
G1: Você afirma que existe um abismo entre o dia-a-dia da profissão de jornalista e os conceitos de verdade e ética que sustentam a atividade teoricamente. Mas isso não acontece em toda a sociedade? A ética, no Brasil não se tornou uma ficção, uma encenação e uma representação – a julgar pelo próprio noticiário? Seríamos o país da moral provisória?
CAIO: Não considero os problemas morais da imprensa brasileira maiores ou menores do que os problemas morais das democracias em geral. A rigor, a nossa dita “grande imprensa” tem uma qualidade comparável à de democracias do primeiro mundo. A moral provisória é a forma pela qual se faz o jornalismo seja aqui no Brasil seja em qualquer outra democracia. Os princípios existem apenas para serem princípios. Qualquer pequena mentira – ou omissão – perpetrada por um jornalista para conquistar alguma informação desvela este abismo, esse uso temporário da moral – o recurso à moral serve para denunciar um corrupto, mas não serve para justificar uma mentirinha, por isso, provisoriamente, o jornalista deixa de ter princípios em relação à mentira e a usa para conseguir informação que ele acha relevante. Os jornalistas agem, em geral, como se os fins justificassem o uso de meios condenáveis moralmente – essa é a raiz da moral provisória.
G1: Qual deve ser o papel do Estado em relação às políticas de Comunicação? Como você analisa o projeto da TV Pública, e por que ela ainda não decolou? E, se qualidade nem sempre dá audiência, como fazer com que as TVs comerciais, tanto as abertas quanto as por assinatura, priorizem o interesse público, cultural e educativo de sua atividade?
CAIO: Pergunta complexa. O Estado deve ser o guardião do regulamento, da Constituição, esse é o seu papel – o Estado (executivo, legislativo e judiciário), este sim, tem uma propensão regulatória extrema, o que acaba por dificultar a própria indústria da comunicação. Mas veja que, às vezes, ele dá uma dentro, mesmo que atrasado, como quando o STF derrubou a finada Lei de Imprensa. Não sei por que a TV do governo não decolou – ela não segue o modelo clássico da TV pública, aliás. No entanto, as instituições têm o direito de criar e alimentar seus próprios meios de comunicação – isso vai ficar cada vez mais inevitável com a pervasividade da comunicação. A terceira questão é um mistério para mim – o que é qualidade? Você não acha, por exemplo, que a Rede Globo produz uma programação de qualidade? Eu acho que sim. O “mercado” internacional chancela essa afirmação quando compra os produtos da Globo. A programação da TV Futura não é muito boa? É uma rede privada. Agora, sobre o interesse público, como priorizá-lo? Quem vai definir o que é interesse público? O vizinho engenheiro? O vizinho ator? O vizinho professor? O vizinho traficante de drogas? A associação do bairro? O criminoso preso numa cela com quarenta pessoas conde cabem cinco? O prefeito? A oposição? O dono do jornal? O leitor? O jornalista? O tribunal? A escola? O deputado? O presidente da República? Todos juntos, mas como? – é muito complicado falar em interesse público, é mais complicado ainda definir o que é interesse público. É de interesse público preservar uma reserva indígena em detrimento de uma estrada que passaria por ela? Existem muitos interesses públicos, depende de como se vê o público.
G1: A espetacularização da notícia é um fenômeno crescente, sobretudo quando envolve escândalos ou crimes hediondos. Como você analisa isso?
CAIO: Não como um fenômeno crescente – mas como um fenômeno onipresente. Não apenas em relação a escândalos e crimes hediondos, mas relação à notícia enquanto tal. O comunicador produz o espetáculo, a sociedade consome o espetáculo, se alimenta do espetáculo e o recicla porque o produtor da comunicação também trabalha sob do domínio da idéia de espetáculo. Não há como fugir dessa aparência de realidade. A teoria crítica o consegue, mas ela mesma é um produto dessa espetacularização. Daí a necessidade cada vez maior de as pessoas se aprofundarem no estudo da filosofia moral. Não é que vá resolver a questão que você coloca – mas vai dar ferramentas de distanciamento para que, no mínimo, entendamos melhor a nossa aparente realidade.
G1: Como você avalia o ensino na Comunicação nas nossas universidades?
CAIO: Sou partidário de um curso de pós-graduação para formar jornalistas e comunicadores. Essa formação viria depois que o estudante tivesse cursado um curso clássico, qualquer um, mas que tenha lhe dado uma formação humana e/ou científica sólida, coisa que as escolas de comunicação – apesar de existirem algumas muitos boas e completas – não conseguem fazer de uma forma geral.
G1: Ao longo de sua carreira como jornalista, quais foram os momentos em que a questão ética se tornou mais evidente e marcante?
CAIO: Seguramente foi quando exerci a função de ombudsman, na Folha, porque me obrigava diariamente e semanalmente, em público, em tratar da ética na profissão. Mas a preocupação esteve e está sempre presente.
G1: Qual a importância do fim da Lei da Imprensa? Como você analisa a legislação atual sobre a Comunicação no Brasil?
CAIO: O fim da Lei de Imprensa é inócuo, porque ela estava em desuso. Acho que o Código Penal dá conta do problema. Tem havido reclamações segundo as quais o fim da Lei de Imprensa acabou com o direito de resposta. Não procede. A jurisprudência está aí para os juízes decidirem e darem esse direito. Mas isso também não resolve. O direito de resposta nunca foi respeitado para valer no Brasil – e sofre também nas outras democracias. Mesmo quando jornais, televisões e revistas são obrigados por decisão judicial a publicar direito de resposta, os veículos o fazem de forma quase ilegível, escondida, sem o mesmo destaque da notícia em questão – geralmente publicada meses, anos atrás. A Justiça é lenta, e não é a falta de uma lei ditatorial que vai atrapalhar ou melhorar a sua maneira de agir. Precisamos resolver, sim, a melhoria da agilidade da Justiça como um todo. Os juízes têm discernimento suficiente para julgar casos de direito de resposta – discernimento não falta, falta agilidade, falta aos veículos a humildade de cumprir o direito de resposta como ele merece ser cumprido.