Entrevista de Caio Túlio Costa a Geraldinho Vieira

Do livro Complexo de Clark Kent – São super-homens os jornalistas?, de Geraldinho Vieira. São Paulo: Summus Editorial, 1991, págs 101 a 108.

OMBUDSMAN

OMBUDSMAN

O ombudsman da Folha de S. Paulo, primeiro no jornalismo brasileiro com observações críticas publicadas sobre o próprio jornal onde trabalha e sobre as edições também dos jornais concorrentes, nasceu em setembro de 1954 e começou a carreira como cronista social no semanário O Imparcial, em Tupi Paulista (interior de São Paulo), em 1972. Caio Túlio Vieira Costa se formou em jornalismo na Universidade de São Paulo (USP), cursou também Filosofia e atuou em jornais estudantis como O Avesso, Dois Pontos, O Beijo. Foi “sócio fundador” do movimento Liberdade e Luta, fez teatro amador e quando saiu da universidade participou das primeiras edições do Leia Livros [um book review da Editora Brasiliense], com o jornalista Cláudio Abramo e o editor Caio Graco Prado. Abramo foi ser correspondente da Folha em Londres e Caio Túlio assumiu ao lado de Graco a direção do Leia Livros até 1981. Foi professor de jornalismo na Universidade Católica de São Paulo (PUC). Em 1981 e 1982 editou a Ilustrada, depois passou a exercer a função de secretário de Redação da mesma Folha. Em 1987 foi para Paris, como correspondente. Voltou em 1989 para ser o ombudsman, com contrato de um ano renovável por apenas mais um ano. O período já renovado encerra-se em setembro de 1991. Escreveu o livro O que é anarquismo? para a coleção Primeiros Passos da Editora Brasiliense

Se as opiniões que você tem publicado, na pele do ombudsman, têm provocado controvérsias dentro e fora da Folha de S.Paulo, a própria tentativa de consolidação da figura do ombudsman, nos moldes que a Folha testa, não é unânime. Para você o que há de fascinante na função e o que há de purgatório?
O trabalho não tem muita coisa de fascinante não. É um trabalho de método, de paciência, e de retorno muito pequeno. É um trabalho inédito: pela primeira vez um jornal brasileiro tem a figura do ombudsman, um profissional para investigar as queixas do leitor. O leitor da Folha tem para quem ligar para reclamar, para sugerir, com quem desabafar, a quem pedir um direito de resposta. E aí estão desde o leitor comum até o leitor sindicalista, o político, o ministro de Estado. O problema é que é impossível fazer um jornal sem erros, completamente exato, perfeito; e, é neste sentido que o retorno é sempre muito pequeno porque de certa forma tudo o que é objetivo o jornal corrige, mas é preciso que aquilo seja objetivo demais para o jornal corrigir. Qualquer dado que tenha um mínimo de subjetividade complica a possibilidade de correção. Não é um trabalho fascinante porque qualquer um pode imaginar o que seja passar o dia inteiro recebendo reclamações.

Quantas reclamações por dia?
Em média 30, sendo que num ou noutro dia esse número chega até a 60 reclamações. Depende muito do dia, do tipo de evento que está mais destacado naquela edição. É uma média maior que a dos outros jornais: os colegas de outros jornais internacionais, inclusive os de circulação maior que a da Folha, costumam atender em média 16 telefonemas por dia. Salvo o ombudsman japonês

Takeshi Maezawa, do jornal Yomouri Shimbun: ali tem um comitê de 21 ombudsmans que recebem cerca de 100 telefonemas/dia cada um, mas trata-se de um jornal que em três edições diárias circula com 16 milhões de exemplares. Então eu diria que o trabalho não é fascinante, requer muita disposição para enfrentar a quantidade de queixas, para enfrentar a reação dos jornalistas (o que é normal, ninguém gosta mesmo de ser criticado). Não há nada de fascinante.

Não vêm telefonemas com elogios à edição ou pelo menos com elogios a uma observação crítica que você tenha publicado?
Só queixas. Quer dizer, a quantidade de elogios não chega a um por cento dos telefonemas.

Até para o melhor atendimento dos leitores e mais ainda para a comparação crítica entre o acompanhamento que os maiores jornais do país fazem de um determinado fato, o ombudsman tem que ter um gosto pessoal pela análise do fazer jornalístico. Na opinião do ombudsman Caio Túlio, o que há de mais relevante em termos de mudança na atual estrutura do jornalismo no país?
O fato mais novo é a tendência à regionalização dos jornais, e neste sentido a Folha é pioneira em se tratando de cadernos diários. O Estadão começou antes, mas com cadernos semanais. A Folha está fazendo, todo dia, cadernos específicos para determinadas regiões do estado de São Paulo e pretende ampliar isso para os demais estados, mas antes é preciso que dê certo em São Paulo.

Por uma característica que parece sedimentar-se na psicologia do jornalista, a vontade de ultrapassar os limites da reportagem e exercer mesmo um papel de pressão sobre a sociedade compõe o que estou chamando de Complexo de Clark Kent. Neste contexto, pecados diante de possíveis códigos éticos são reclamados pelos leitores: o jornalista quer ser um super-homem? A sociedade quer que o jornalista seja um super-homem, ou tudo não passa de um mito vendido pela ficção, o mito de uma profissão muito emocionante e mais poderosa que a própria justiça?
Há uma mistificação muito grande em torno da figura que a sociedade faz do jornalista e da figura que o jornalista faz de si mesmo e da profissão. Você tem razão no diagnóstico. De qualquer maneira acho que para qualquer profissão uma boa dose de dinamismo é essencial, mas o que vai definir o bom jornalista, o profissional competente, é seu grau de ceticismo. O ceticismo é fundamental mesmo para que o jornalista possa compreender a sua real participação ou a sua quase nula participação no processo de transformação social. O jornalista age como você mesmo disse, mas usando outra imagem, como se a história passasse ali pela sua máquina de escrever. Na verdade ele está apenas reportando o que está acontecendo, e muitas vezes reportando mal, com atraso e com deformações – em última análise, até desinformando. Depois de mais de um ano na função de ombudsman deu para perceber que nenhum texto da Folha, eu digo nenhum, resiste ao especialista. Qualquer especialista que pegue uma reportagem sobre assunto que ele entenda muito vai encontrar erros muito graves, ou vários pequenos erros. Isso mostra o grau de incipiência que de certa forma vive o jornalismo brasileiro. Acho que este fenômeno é generalizado, não está só na Folha (que é o jornal que leio diariamente e com maior atenção). Acho correta a observação sobre esta idealização que estudantes de jornalismo, o público e mesmo os profissionais da área fazem: o jornalista se vê como um super-homem, ele se sente como um super-homem. Em determinadas ocasiões isto até ajuda, mas o fato dele se ver constantemente assim pode acabar prejudicando e levando o profissional a fazer certas coisas que sequer estão nos limites de sua profissão. Uma dose de ceticismo é fundamental.

O furo resiste ao tempo e às inovações tecnológicas como o grande mito do jornalismo. Como uma edição deve “vender” ao leitor o fato de estar saindo na frente com informações importantes sobre assuntos relevantes?
– O jornal tem basicamente que dizer que está dando um furo, que tem uma informação exclusiva. O produto do jornal é a notícia, é a informação. Ele tem que saber vender este produto: tem que dizer, e com toda clareza, que está dando um furo. O problema é que o jornalismo brasileiro está tão tomado por um ranço corporativista que os furos são raros. Poucos repórteres são investigativos e trabalham no sentido do furo. Os poucos sobressaem da média, e na média todo mundo sabe o que o outro está fazendo e os jornais saem com noticiários completamente pasteurizados pela corporação.

O jornalismo brasileiro diminuiu sua carga investigativa?
De jeito nenhum. A pasteurização é que aumentou, mas de certa forma, o jornalismo investigativo aumentou também. Nos últimos 15 anos você conta bem mais reportagens investigativas – e que levaram a furos sensacionais – do que você contava de 1975 para trás, ou de 1964 para 1975. Você teve o furo da quebra da Caderneta Delfim, você teve a Ferrovia Norte-Sul, a operação do Figueiredo, o tumor do Tancredo (esse era um furo de cinco palavras: “Tancredo teve um tumor benigno”). Você tem ainda os furos que o Gilberto Dimenstein deu – a questão da Fundação Cabo Frio e outros. Isso para falar só da Folha, mas você tem os furos que o Jornal do Brasil deu, além dos furos dos jornais de fora de Rio e São Paulo – os dos jornais de Brasília, os da Zero Hora do Rio Grande do Sul. Você tem até maiores investigações do que na época da ditadura, quando floresceu a famosa “reportagem investigativa” via revista Realidade – que de furo não tinha nada, tinha, isto sim, um trabalho fotográfico e de texto.

E a questão do jornalismo opinativo, você acha que vem ganhando mais espaço ou é também uma tradição no jornalismo brasileiro?
Sempre foi assim. Carlos Lacerda foi o quê, quem foi Carlos Lacerda? Quem foi o Chateaubriand além de um grande fazedor de jornais e de escrever pessimamente o português? A crônica e a análise políticas eram até mais freqüentes nas décadas de 40, 50 e 60 do que agora. Os jornais de agora acabaram com os cronistas, quer dizer, eles sobrevivem em pequenas páginas: antes você tinha quase que um cronista a cada duas páginas.

Voltando à questão do furo: os jornais de mentalidade mais provinciana tendem a tentar se convencer de que o furo do adversário não tinha de fato tanta importância e deixam o assunto de lado. Como deve se comportar um jornal sério quando é furado?
Primeiro checar, e se for verdade, dar no outro dia. Se houver condição de entrar na investigação e fazer melhor, ótimo. Caso contrário, continua apenas na seqüência dos fatos. Dar e levar furo é da profissão. O problema é que o seu leitor, se não compra outro jornal, não vai saber aquilo, e o seu problema é com o seu leitor e não com o furo alheio. Se você se preocupa só com o seu concorrente, acabou o seu jornal. Você vai estar preocupado com a sombra. Sua única preocupação tem que ser informar o seu leitor e aí não tem choro nem vela, o seu leitor vai saber que você levou um furo. Não tem saída.

Se por um lado o jornalismo no país se desenvolve em alguns aspectos, os plantadores de notícias estão também cada vez mais tarimbados na arte de, se fazendo de fonte de informações, manipular o repórter ou o colunista. Os jornalistas estão ganhando ou perdendo neste jogo?
Muitas vezes o jornalista também engana a fonte para conseguir determinada informação. Isto é o fundamental do jogo, a sua relação com a fonte. Só o jornalista sabe, e ele precisa ter malícia para tanto, em que momento ele deve revelar e em que momento ele não deve revelar uma fonte. Assim como os momentos em que ele deve dar e em que ele não deve dar uma informação. A não ser que o jornalista seja muito ingênuo, ele vai saber quando determinada coisa está sendo plantada e porque está sendo plantada. Se ele precisa da fonte – porque os leitores dele vão precisar daquelas 300 informações que poderão ser dadas nos próximos “x” anos – então ele deve saber avaliar a necessidade de dar ou não dar determinada informação. Muitas vezes o jornalista cai no jogo da fonte por ingenuidade ou por incompetência. E a tudo isto está ligado um problema ético que cabe a cada um resolver interiormente.

Nas eleições presidenciais de 1989 e depois nas eleições para governos de estados, uma quantidade substancial de jornalistas saiu de seus empregos para fazer campanha para os políticos. A maior parte deles por razões puramente financeiras. E aí?
Aí que é um problema deles, um problema que cabe a eles resolver. Eu só acho difícil para o jornalista que volta ao jornal, ou para a televisão, exercer diante do candidato ao qual ele serviu um papel de extrema independência como se requer ao jornalista. Acho muito difícil, a coisa complica porque numa campanha você acaba conhecendo intimamente aquele político. O jornalista não deve ter a menor intimidade com os personagens do poder que ele cobre.

Que lugar os cadernos culturais ocupam hoje no jornalismo brasileiro?
Há um fenômeno muito interessante: todos eles se adaptaram ao mercado. Entenderam que há um mercado de discos, de vídeo, de shows, de cinema (e mercado significa desde o cineclube que exibe filme de arte à sala que exibe “Rambo”, desde o livro de arte ao best-seller). Os cadernos estão adaptados ao que seria uma cobertura madura dentro de uma sociedade de mercado, e esse é um bom fenômeno que você vê nos cadernos culturais dos grandes jornais. Os cadernos dos jornais que estão fora do eixo Rio-Brasília-São Paulo ainda sobrevivem na base de uma identidade muito mitificada que é a da “Cultura”, com C maiúsculo e entre aspas. São aqueles longos ensaios que melhor caberiam em revistas especializadas ou revistas acadêmicas, que é um pouco o que os cadernos culturais faziam antes. Esta “modernização” é discutível, você pode dizer que estão todos vendidos ao mercado, mas eu acho que o que há é percepção do mercado e das diferenças entre os mais e menos artísticos. Que há uma preocupação maior em acompanhar os eventos há, e que de certa forma morreram os cadernos culturais do modelo antigo, morreram. Sobrevive o suplemento de cultura d’O Estado de S. Paulo que eu duvido que você, jornalista da área, leia.

Não raramente publicam-se ali bons ensaios.
Mas não dá para ser uma leitura sistemática. O “Folhetim” acabou, foi substituído pelo “Letras”, que eu até acho sempre meio atrasado, ruim, mas que enfim cumpre uma certa função.

Muita gente anda dizendo que a “Ilustrada”, o caderno cultural da Folha, gostaria de circular em Nova Iorque, que a arte e a cultura brasileiras não têm espaço.
É tudo bobagem. O que a “Ilustrada” cobre não é diferente do que sai no “Caderno B” (Jornal do Brasil), em O Globo ou no “Caderno 2” do Estadão. O problema é que a cultura se internacionalizou mesmo. Não houve um lançamento importante de escritor brasileiro que a “Ilustrada” não tenha dado, e bem. Não há um filme brasileiro de importância que não tenha sido objeto de destaque na Folha. É possível se discutir como os críticos atacam uma peça, um filme ou um livro brasileiro: o importante é se discutir a maneira como se faz crítica hoje no Brasil – e de certa maneira a “Ilustrada” é uma ponta-de-lança. É possível se discutir o que há e o que não há de omissão na crítica. A nossa realidade é essa e os cadernos culturais refletem essa realidade: dos 300 lançamentos de discos que existem por mês (vamos dizer que sejam 300), seguramente 280 são discos estrangeiros… de certa forma os jornais têm que refletir isso.

Que nível de competência o ombudsman vê na crítica de espetáculos, livros e discos da “Ilustrada”?
Acho que uma coisa que se vê muito na “Ilustrada”, e que vai acabar fazendo escola (acho que isso talvez seja uma influência nefasta do Paulo Francis na “Ilustrada”), é o problema de se confundir a crítica com o deboche. Muitas vezes detalhes pessoais em relação ao criticado ou ao produtor da obra recebem destaque maior que a própria obra.

Começamos esta entrevista com as frustrações do ombudsman, mas eu gostaria de saber das alegrias do jornalista. O que há de fascinante na profissão?
O fascinante é o furo, é a informação exclusiva, aquela coisa que você investigou, trabalhou, que você sabe que é verdadeira. É o que dá mais retorno pessoal e profissional.

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