PUBLICADO NA REVISTA DE JORNALISMO ESPM/COLUMBIA JOURNALISM REVIEW – 2a. Edição 2012
Caio Túlio Costa
Assim se divide o mundo pós-moderno: entre nativos digitais e nativos analógicos.
Os nativos digitais dominam de maneira intuitiva a internet e os gadgets que a manipulam. Os nativos analógicos não dominam este universo. No entanto, muitos deles se esforçam para se virar no mundo digital.
Os nativos analógicos são pessoas experientes, grande parte demasiado crítica. Quando buscam informação na internet, os nativos analógicos preferem as fontes conhecidas, as quais conquistaram credibilidade no mundo analógico. Na primeira hora, nunca prestam atenção nas novidades digitais, como aplicativos, redes sociais ou blogs de pessoas de quem nunca ouviram falar. Reclamam do excesso de informação, das opiniões e da bagunça informacional que o “excesso” provoca. Quando visitam um blog, eles se assustam com a maneira como as pessoas se pronunciam e abastardam a linguagem. O palavreado tosco e abreviado, os julgamentos definitivos e as opiniões gratuitas incomodam os nativos analógicos.
Os nativos digitais não têm esta preocupação. No geral, são protagonistas na internet. Têm bastante público, algum público ou nenhum público, mas sempre estão à vontade na rede – conversando com os amigos, coletando informações que os satisfaz, descobrindo um aplicativo novo ou investindo numa rede social recém-lançada.
No Twitter, eles se sentem em um palco. No Facebook, eles agem entre pares. No Foursquare, eles se informam sobre qualidade de serviços. No Skype, eles conversam com amigos e familiares sem pagar conta de telefone. No Drawsomething, eles trocam desenhos simplórios. No Instagram, eles se sentem artistas, fotógrafos, decoradores ou gourmets. No iPhone, eles teclam com rapidez usando apenas os dois polegares…
Os nativos analógicos têm formação livresca, aprenderam com livros, tiveram aulas tradicionais, usaram papel carbono para fazer cópias de um mesmo texto, tem guardada em algum lugar da casa, carinhosamente, uma máquina de escrever. Usam o computador tanto como máquina de escrever como para ler textos na forma de arquivos PDF ou Word. Conheceram celular e e-mail já na idade adulta.
Os nativos digitais apreendem o conhecimento de outro jeito. Sua formação se dá com conteúdos digitais na forma de música, cinema, videogame, histórias em quadrinhos e minisséries, além dos livros, é claro. Os nativos digitais aprendem geografia em videogames, história em documentários, inglês com as músicas, conjuntura com redes sociais e só fazem contas com calculadoras. Nasceram com endereço de e-mail, usam celular desde crianças.
Estes dois tipos, caricaturados acima, estão na base de toda a confusão que a indústria de comunicação enfrenta ante as mudanças tecnológicas que viraram seu negócio de ponta-cabeça. No fundo, estes dois tipos protagonizam uma disputa geracional espraiada por toda a contemporaneidade.
Os nativos analógicos tentam salvar negócios analógicos adaptando-os ao digital. Os nativos digitais correm por fora e criam negócios completamente digitais – como o do Google e o do Facebook. No caso do Facebook, seus criadores não se preocuparam em ter um modelo estável e garantido de negócio enquanto não alcançassem uma bela audiência mundial. Com quase 1 bilhão de usuários e valor de mercado inflado sem receita para sustentá-lo, o Facebook agora corre atrás de um modelo.
Uma terceira figura também pode ser detectada, no meio destes dois polos: a do analógico digital – numa leitura aberta de definição cunhada pelo cientista Silvio Meira (definição explicitada em palestra no Museu da Imagem e do Som em São Paulo, em evento da Serasa-Experian em 4/6/2012). É o caso se Steve Jobs, que soube dar sentido digital inclusive ao negócio da música (iTunes), sem falar do computador pessoal, dos tablets e dos celulares.
A essência do primeiro, nativo analógico, é a da solidez dos conceitos, da informação distribuída unidirecionalmente: o professor estuda e ensina, o jornalista apura e informa.
A essência do segundo, nativo digital, é a da liquidez dos conceitos: ele sabe tanto quanto o professor, ele não precisa ser jornalista para informar e opinar, seus conceitos se amoldam às situações assim como os líquidos se ajustam e tomam a forma de seus receptáculos (conforme defende muito bem Zygmunt Bauman in Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.)
No caso específico da imprensa, a tensão entre analógicos e digitais se resume na incerteza de como o jornalismo irá sobreviver para continuar a relatar os fatos de forma independente, fiscalizar os poderes e regar o diálogo crítico.
Ao mesmo tempo em que há nativos analógicos que se digitalizaram pela necessidade de sobrevivência, ou por inteligência e capacidade de seguir o novo, o modelo de negócio da imprensa também precisa se digitalizar. No fundo, não há como “analogisar” a comunicação em rede, exatamente o que a imprensa tenta fazer – sem o perceber – quando transplanta para o ambiente digital o seu modelo de negócio analógico tradicional.
Desde Gutenberg até a emergência da internet comercial – lá se vão exatos 555 anos – a indústria da informação era totalmente responsável pela cadeia de valor do seu empreendimento. Dominava 100% do seu modelo de negócio. A partir de 1995, quando a internet se tornou negócio com as facilidades da world wide web, a indústria da comunicação foi colocada à prova. Grande parte da confusão vem do fato de que os meios de informação tradicionais não dominam mais a totalidade da cadeia de valor no mundo digital.
Tome como exemplo o jornal, o vetusto exemplar da mídia clássica. A empresa que o edita produz o conteúdo (“conteúdo é o rei!”), negocia e compra papel e tinta para impressão do mesmo, detém a imponente máquina impressora (ou paga pelo uso dela), arrecada dinheiro com a publicidade e domina a distribuição do seu produto seja por meio da venda avulsa dos exemplares nas bancas ou da comercialização de assinaturas. Desenvolveu três fontes distintas de receita no trato com anunciantes e consumidores: vende assinatura, vende exemplares avulsos e vende publicidade. Vale o mesmo para o negócio das revistas tradicionais.
Vale o mesmo para o rádio e para a televisão – ambos produzem o conteúdo, levantam o sinal e pagam pela sua distribuição via satélite ou via torres de transmissão terrestre, seja na forma direta ou por intermédio de parceiros retransmissores. A publicidade (e suas variações como o merchandising) paga tudo na TV aberta e no rádio. Os assinantes e a publicidade pagam a conta na TV a cabo ou por satélite. Tudo dominado!
O jogo muda no mundo digital. A começar pelo fim: quem domina a distribuição dos conteúdos digitais é a indústria de telecomunicações, que arrecada cerca de 60% de todo o dinheiro que circula na indústria digital – cujo total em breve ultrapassará os US$ 2,5 trilhões de dólares de faturamento por ano (os dados referentes ao mercado digital mundial vêm de estudo, não publicado, que ajudei a BCG – Boston Consulting Group – a realizar em 2010). A mídia clássica não domina a distribuição digital da mesma forma que domina a distribuição do seu conteúdo impresso ou nas ondas eletromagnéticas.
Ainda na ponta da distribuição, quem domina o aparelho que recebe os conteúdos (para fazer a função do papel e do aparelho de rádio ou TV) é a indústria produtora de computadores, laptops, tablets, smartphones e celulares. 14% do faturamento digital vão para esta indústria.
Contudo, além das telefônicas e dos produtores de diversificados aparelhos receptores, surgiu mais um atravessador no caminho. É o produtor de tecnologia, em geral um criador de software, que agrega e manipula conteúdos de terceiros, como o Google, o Bing, os sites de comércio eletrônico (Amazon, E-Bay), os sites de serviços em geral (Webmotors, Monster, Buscapé), as redes sociais (Facebook, Twitter, YouTube) e até mesmo novidades do mundo financeiro, como o PayPal – entre inúmeros outros. Os agregadores carregam 22% do faturamento anual digital e esse percentual só cresce.
Restou à indústria tradicional de comunicação a produção do conteúdo. E ela está conformada com isso. No máximo, quer digitalizá-lo para vendê-lo aos internautas. A indústria do conteúdo, com receitas de inserção publicitária e aquelas advindas da cobrança pelo acesso ao produto informativo, fatura somente 7% do total das receitas digitais.
Surge então o primeiro grande desafio da indústria da informação na era digital: como enfrentar esta mudança brutal na cadeia de valor? No fundo, ela tinha um bom negócio de distribuição, mas agora apareceram telefônicas, agregadores, fabricantes de aparelhos e de softwares para atrapalhar o velho e bom negócio da venda da informação – sem falar no público que (mal) acostumou-se a consumir informação de graça.
Como vencer sem fazer apenas a transposição do modelo tradicional para o mundo digital? Como se libertar da situação de tentar cobrar por um conteúdo que os internautas conseguem de graça, mesmo de pior qualidade? Como financiar a produção online de jornalismo de qualidade? Como enfrentar tanta informação, tanto boato, tanta opinião? Como garantir o jornalismo independente na sua forma vencedora?
Ponto central para acordar dormentes: o jornalista perdeu o monopólio da informação e perdeu o monopólio da opinião. Mais: os meios de comunicação perderam o monopólio da informação e da opinião. Durante os 555 anos de domínio do sistema Gutenberg, esta indústria distribuiu conteúdo de forma unilateral, despejou informação e opinião nos leitores, nos ouvintes e nos telespectadores. Isso mudou. Leitor, ouvinte e telespectador agora têm totais condições, sem nenhuma expertise ou poderio financeiro, de produzir informação e opinião. O internauta pode não ter audiência nem alcance e tampouco frequência, mas tem poder de mídia.
Esta nova realidade não invalida, absolutamente, o papel do jornalista no mudo digital. Ele tem, seja por experiência ou por formação acadêmica, a capacidade técnica de produzir a informação e a opinião. As pessoas continuam a buscar essa intermediação e nada indica que ela tenha se tornado obsoleta. Os resultados de um agregador de notícias qualquer, como o Google News, mostram isso. As primeiras respostas, e mesmo a maioria delas, quando se pesquisa um tema qualquer de notícia, vêm de fontes tradicionais de informação. Os jornais, as revistas, as agências clássicas de notícia, surgem sempre com mais relevância nos resultados orgânicos da pesquisa do Google. Se eles têm mais relevância é porque têm credibilidade.
No entanto, a questão persiste porque muitas vezes uma fonte não confiável pode divulgar notícias inverídicas, distorcidas e opiniões desabonadoras – sejam sobre indivíduos ou marcas. E esse resultado pode estar embaralhado nos resultados de uma pesquisa no Google. Não há como resolver ou controlar totalmente esta questão mesmo e apesar dos esforços dos buscadores com algoritmos inteligentes.
No fundo, o jornalista precisa se convencer que deixou de ser o ator principal e se tornou um coadjuvante no complexo mundo digital. Essa é a nova realidade da comunicação e somente a educação, também em uma nova forma que escola nenhuma conseguiu delinear ainda, vai permitir que os usuários saibam separar o joio do trigo – e ficar com o trigo.
Os desafios para o jornalismo se multiplicam. Estão na questão econômica (a mudança na cadeira de valor), na questão moral (em quem confiar no mundo online?) e na questão da produção jornalística propriamente dita (como a da transformação do velho jornalista produtor de texto em sujeito multiplataforma, pois o jornalismo na rede exige o domínio das ferramentas de captação de imagens e sons além da destreza na escrita).
Faz pouco tempo, listei num livro 28 tópicos que a complexidade da nova realidade introduz (Ver “Ética e Mídia” in Cultura das Transgressões no Brasil – Visão do Presente. São Paulo: Saraiva, 2009 e disponível online conforme acessado em 23/05/2012: http://caiotulio.com/etica-e-midia/).
Reforço aqui alguns deles, os mais prementes, como o da concentração econômica das empresas de mídia que só faz aumentar. Apenas oito empresas globais de comunicação faturam a metade do dinheiro que arrecada a indústria (ver lista completa in http://caiotulio.com/google-e-a-terceira-maior-empresa-de-midia-do-planeta/ conforme acessado em 8/6/2012).
Ou, no caso específico da telefonia móvel, o problema das empresas de comunicação que tateiam sobre a melhor forma de inserir conteúdo informativo neste sistema e temem o poderio das telefônicas móveis.
Sem falar na nova publicidade seja em rede seja no celular. Manipulados por técnicas inéditas, os conteúdos podem misturar informação, entretenimento e serviço com material publicitário de forma pouco ou nada perceptível pelo público.
Nesta esteira, surgiu o “prosumer”, palavra que define o consumidor que avalia produtos e serviços e assim ajuda consumidores e empresas. Qualquer internauta pode deixar um comentário num site comercial e os consumidores poderão se orientar (ou se desorientar) em relação àqueles bens ou serviços oferecidos. Isso dá um poder inédito ao consumidor.
Assim como pode haver confusão entre informação e propaganda, pode haver também entre o que é jornalismo e entretenimento. Na nova mídia, é mais difícil separar visualmente uma categoria da outra. Jogos online, shows, música, cinema, produtos e serviços diversos se confundem numa mesma plataforma de informação, exibição e comercialização.
A web também não dá tempo ao jornalismo para uma pesquisa minimamente acurada quando se publica informação em tempo real. Por isso, as informações surgem inexatas. O que difere a nova mídia da comunicação tradicional é que a informação inexata pode ser corrigida e ampliada online, imediatamente depois de publicada – algo impossível na mídia impressa.
Não existe saída milagrosa para os desafios expostos aqui.
Do ponto de vista econômico, entre os jornais, há três correntes distintas enfrentando essa situação. Correntes dominadas, evidentemente, por nativos analógicos.
Uma é liderada pelo jornal inglês The Guardian, que aposta no “open journalism” e cujas receitas principais vêm da publicidade e as secundárias da venda de produtos de valor agregado (textos de arquivo, anúncios de emprego, site de namoro).
A segunda corrente é personificada por The Times, que bloqueia completamente o conteúdo para não assinantes (sejam digitais ou analógicos).
Há uma terceira, capitaneada pela aposta do New York Times no chamado “paywall poroso”, uma plataforma que libera o acesso caso o internauta venha de um link de busca ou de redes sociais e permite que ele leia gratuitamente 10 textos por mês se chegar diretamente à homepage do jornal.
Nenhuma dessas três correntes provou até agora que pode ser a vencedora, mormente porque todas estão requentando na forma digital seu modelo clássico de negócio. As exceções, em relação ao “requentar”, seriam os jornais que partem para a venda de produtos de valor agregado, como o Guardian tenta fazer, mas ainda sem sucesso financeiro.
No entanto, a corrente que causa mais excitação entre os analógicos digitais é a do “paywall poroso”. Nada indica que esta tentativa de transpor o modelo tradicional (publicidade + conteúdo pago) para o mundo digital possa se revelar capaz de trazer receitas e lucros como o modelo clássico tem sido capaz de fazê-lo.
O recado que este texto procura dar, porém, é que os nativos analógicos só irão conseguir vencer estes desafios caso respeitem o que o digital tem de revolucionário: a interação. Os nativos analógicos responsáveis pelas atuais atividades da imprensa ainda a enxergam como uma indústria de informação pura. Mas a interação em rede (seja móvel ou fixa) colocou um ponto final na comunicação exclusivamente unilateral do jornalismo clássico. E mudou, com a ajuda da tecnologia, do software, a maneira de as pessoas lidarem com a informação.
A informação na era digital não é algo “complementar” ao jeito de ser da velha mídia, como ela corriqueiramente entende ser. A internet também não deve ser reduzida à condição de ferramenta de marketing ou de divulgação da imprensa tradicional. E a informação não corre solta no mundo digital. O negócio da imprensa no mundo digital é de outra natureza, muito mais complexo do que produzir conteúdo, imprimir e distribuir. Inclui capacidade de desenvolvimento tecnológico e o uso da interação para amplificar receitas.
O protagonista da imprensa que quiser vencer no mundo digital, seja nativo analógico ferrenho ou analógico digital convertido, vai precisar ampliar a visão do negócio caso queira se antecipar aos nativos digitais que tomarão conta desta indústria daqui há pouco, é questão de uma ou duas gerações. Essa ampliação pressupõe seguir a vocação da rede e compreender que se está numa indústria maior do que a da informação. Ele está na indústria da comunicação. E ela está na era digital, na era interativa. Isto pressupõe não apenas produzir conteúdo de qualidade, mas também software de qualidade, ou seja, além do conteúdo, produzir tecnologia para fazer face às demandas dos novos tempos – digitais.
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Caio Túlio Costa é jornalista, doutor em Ciências da Comunicação pela ECA-USP, professor do curso de pós-graduação da ESPM-SP, diretor do Comitê de Estratégia Digital da Associação Nacional de Jornais e sócio da MVL Comunicação.