Publicado no site Trópico, em 13/07/2009
Em novo livro, Caio Túlio Costa aborda impasses da prática jornalística em face de uma “realidade líquida”
Por Humberto Pereira da Silva
O jornalista Caio Túlio Costa foi o primeiro ombusdman da imprensa brasileira, no jornal “Folha de S. Paulo”. Atualmente é executivo na área de comunicação e professor universitário de ética em jornalismo. Na guinada para a carreira acadêmica, sua tese de doutorado pela USP é agora publicada em livro: “Ética, Jornalismo e Nova Mídia: Uma Moral Provisória” (Jorge Zahar Ed., 287 págs., R$ 39,90).
Informações a respeito das atividades anteriores de um autor são muitas vezes irrelevantes: o pensamento expresso sumarizaria uma trajetória em campo específico de atuação e pode bem se impor e se justificar internamente. Ocorre que talvez seja improvável, para quem conheceu Túlio Costa como ombudsman, não indagar sobre laços entre sua antiga função e esse livro sobre ética jornalística.
Na leitura de “Ética, Jornalismo e Nova Mídia”, a primeira coisa com que Túlio Costa pode surpreender o leitor é com o esforço para explicitar o “lugar de onde fala”: da academia. Desse ponto de vista, para o bem ou para o mal, ele exibe um legítimo exemplar de tese doutoral: trabalho de pesquisa, explicitação metodológica, problema de fundo e argumentação que sustenta uma tese.
A tese parte da constatação de que a realidade em que vivemos (assimétrica no consumo de informação, centralizada por conglomerados de mídia e seus satélites e organizada pela tecnologia) reforça a necessidade do debate e da compreensão de preceitos éticos tradicionalmente definidos pelo jornalismo. Com isso, a questão que ele se propõe é a seguinte: o desmantelamento e o relativismo de preceitos morais colocam em xeque o futuro da profissão de jornalista? Se constatada a relativização, como moldar a prática jornalística?
A resposta dada é que a ética e a antiética são imanentes à prática jornalística. O jornalismo será ético ou não em função do sabor da hora, do lugar, da necessidade, do interesse, do olhar. Cabe ao jornalista utilizar um “código moral provisório”, quando, por uma razão qualquer sua moral idealizada se revelar insuficiente e ele precisar de uma “meia verdade” para alcançar um objetivo que considera nobre.
Túlio Costa chega a essa resposta após percorrer os dez grandes temas do livro, onde são tratados, na sequência, os seguintes tópicos: “Percurso” (com uma apresentação do rumo que a pesquisa tomou, no qual apresenta justificativas para a tese e trata da questão das novas mídias no mundo atual), “Representação”, “Ambiguidade”, “Razão”, “Linguagem”, “Objetividade”, “Espetáculo”, “Pós-modernidade”, “Relativismos” e “Moral Provisória”.
Nos tópicos iniciais, pela relevância que assumem no corpo do livro, destacam-se a “Representação”, a “Ambiguidade” e a “Razão”.
Para abordar o problema da representação, Túlio Costa se vale de filósofos como Descartes e Spinoza, passa pelo pintor Velázquez e a análise do quadro “Las Meninas” e pelo primeiro trabalho acadêmico sobre jornalismo, que se deve a Tobias Peucer, “Os Relatos Jornalísticos” (1690). Apresentado na Universidade de Leipzig, nessa obra Peucer procura definir o conceito de notícia e tem como tripé a verdade, a justiça e a ética. O objetivo de Túlio Costa é mostrar que no mundo das comunicações o jornalista manipula, maneja, hierarquiza representações que lhe foram feitas pelas diversas fontes consultadas.
Ao analisar a questão das ambiguidades morais, o autor convoca personagens imersos em dilemas éticos, como Antígona e Hamlet, aborda o julgamento de Sócrates, considera a questão da busca da felicidade individual em Epicuro, o tratamento da covardia dado por Montaigne e o modo como Balzac fala sobre hipocrisia. No final, são apontados os dilemas éticos com que o jornalista convive: sinceridade ou distorção, anonimato ou fama, fidelidade ou hipocrisia.
Quando trata do tema a razão, Túlio Costa se atém à ética de Max Weber. Na medida em que separa ética da convicção da ética de responsabilidade, Weber ensinaria aos jornalistas que ambas pressupõem diversas ocasiões em que cabe recorrer a meios “duvidosos” para se alcançar “bons” fins: nenhuma ética assevera em que medida um fim moralmente bom justifica meios e consequências moralmente perigosos.
A dificuldade que se observa nos temas iniciais de “Ética, Jornalismo e Novas Mídias” (o que, embora não pareça ter sido sua intenção, acaba por dividi-lo em duas partes) é o caráter panorâmico com que a gama ampla de assuntos é tratada. Um fio condutor, como quer Túlio Costa, é possível, mas basta pegar o dilema de Antígona (enterrar o irmão, Polinices, de acordo com ritos ancestrais ou respeitar as leis da cidade) e o pressuposto da “moral provisória” para se ter um trabalho da dimensão do próprio livro que ele nos apresenta.
Para ficar em outro exemplo, ligar Sófocles, Sócrates, Epicuro, Montaigne, Karl Kraus e Janet Malcolm e o problema da assimetria no controle da informação, como abordado por Joseph Stiglitz, exigiria um trabalho monumental. Com a profusão de referências, os laços com a questão central da tese acabam se diluindo e o sobrevoo nos temas termina por confundir o leitor.
Assim, para quem ficar enfadado com as longas exposições didáticas e panorâmicas, recomendo ir diretamente aos quatro capítulos finais. O modo como os conceitos de “modernidade líquida”, de Zygmunt Bauman, “o príncipe eletrônico”, de Octavio Ianni, e “assimetria da informação”, de Stiglitz, são explorados, e os exemplos extraídos da realidade atual fornecem elementos para se compreender porque a ética e a antiética são imanentes ao jornalismo. Com esses conceitos, melhor realçados e mais bem desenvolvidos na “segunda parte” do livro, o autor busca subsídios para explicar a maneira pela qual a imprensa cobriu a onda de ataques do PCC em São Paulo, em 2006, ou os ataques às Torres Gêmeas em Nova York, em 2001.
De fato, autores como Adorno e Horkheimer, que teorizaram sobre indústria cultural, Guy Debord, que gerou polêmica ao sustentar o nexo entre mercadoria e espetáculo, e os citados Bauman, Ianni e Stiglitz, oferecem conceitos para se compreender escolhas no jornalismo, ao cobrir acontecimentos envoltos em infindos interesses.
A leitura dos capítulos finais de “Ética, Jornalismo e Nova Mídia: Uma Moral Provisória” possibilita que se coloque em pauta o debate sobre preceitos éticos tradicionais no jornalismo e indaguemos sobre os riscos para o futuro da imprensa numa realidade “liquida”, “assimétrica em relação ao consumo de informação” e pontificada por um “príncipe eletrônico”.
Mas ainda noto um problema: a discussão teórica nos permite a compreensão; conceber uma prática jornalística moldada por uma “moral provisória”, por outro lado, nos leva a perder no caminho a credibilidade. No dilema entre sinceridade ou distorção, a prevalecer a distorção, alguém sairá enganado. E tanto pode ser o público, que não perceba os mecanismos de manipulação das notícias, quanto o próprio jornalista, que manipula e não se dá conta que a manipulação já é percebida como espetáculo. Do contrário, a prática jornalística e os preceitos éticos que a envolvem não passam de profundo nonsense.
Nesse ponto, ainda que a realidade atual se mostre “líquida”, assumir “uma moral provisória” burla o credo na atividade jornalística como um todo. Seguir a “liquidez” implica colocar em xeque a própria credibilidade do jornalista.
Humberto Pereira da Silva é professor de filosofia e sociologia no ensino superior e crítico de cinema, autor de “Ir ao cinema: um olhar sobre filmes” (Musa Editora).