Publicada na revista UM de maio de 2009 (número 51)
ENTREVISTA
Roberto Melo
A trajetória de CAIO TÚLIO COSTA sempre esteve ligada a duas palavras: pioneirismo e ética. Como jornalista, foi o primeiro ombudsman da imprensa brasileira, na Folha de S. Paulo, função que questionava publicamente o comportamento moral do próprio jornal. Já como executivo, ajudou a criar e dirigir o UOL, primeiro grande portal da internet brasileira. Depois disso presidiu o Internet Group, responsável pelo iG, comprado pela Oi, onde Caio é encarregado de plataformas multimídias. Entre uma coisa e outra, criou o Instituto DNA Brasil, que reunia pensadores para discutir assuntos estratégicos.
Aos 53 anos, esse mineiro de Alfenas acaba de lançar seu quarto livro, Ética, Jornalismo e Nova Mídia – Uma Moral Provisória (Editora Zahar), baseado em seu doutorado em Comunicação pela USP. Na obra, mostra que a revolução digital criou fantásticas possibilidades – e também inúmeros problemas morais que estão longe de se resolver.
“O QUE ESPANTA NA INTERNET
É ESSA QUANTIDADE ABSURDA
DE NOTICIAS MAL APURADAS
E OPINIÃO DESENFREADA.
ISSO É PRODUTO DA REDE,
É A NOVIDADE, O DESAFIO”
Q: Em 1996, você estava na cabeça da equipe que lançou a internet como mídia no Brasil, no UOL. De lá para cá, que previsões foram cumpridas e o que surpreendeu?
R: A grande surpresa foi a possibilidade de troca de informações. A grandeza dessa comunicação interativa, multi-interativa, me espanta até hoje. Fui criado no jornal, numa cultura de – no bom sentido – “despejar” informação na cabeça das pessoas. Essa cultura tem de ser revolvida, para entender que o jornalista continua sendo um ator importante, mas não é mais O ator principal, como era quando a informação era de mão única.
Q: Então o jornalismo não acabou, como se diz por aí?
R: Não acabou e não vai acabar. Desde o ponto de vista técnico, que é a apuração das informações, até o mais sofisticado, que é o da questão moral, o jornalismo continua enfrentando os desafios que sempre enfrentou desde que surgiu, há 500 anos.
Q: Mas essa injeção de participação não pode ser letal para o negócio do jornalismo?
R: Não sei dizer se é letal, sei que é uma revolução. Basta ver a explosão das redes sociais, entendendo rede social de um jeito amplo: o Youtube, por exemplo, é uma rede social, que interfere nos costumes e na informação, seja séria ou frívola. Veja como o Youtube foi usado na campanha presidencial que elegeu o Obama nos Estados Unidos, ou como é usado no entretenimento. As pessoas estão colocando e trocando vídeos, levantando notícias na rede, dando opinião – e a opinião é desenfreada.
Q: Os blogs ocupam muito mais tempo e espaço dando opiniões do que apurando notícias, a não ser que o sujeito presencie um alagamento, um desastre. Afinal, ser repórter custa dinheiro, tempo de apuração…
R: … Custa formação…
Q: …então, você não acha que a função de formar opinião (antes exclusiva da mídia) está sendo mais ameaçada do que a reportagem propriamente dita?
R: De fato é o que mais nos incomoda como jornalistas. Nossa formação nos diz como apurar uma notícia, como saber onde tem notícia e onde não tem. Esta maneira de fazer jornalismo, que é a maneira correta, técnica, que exige a formação, não vai acabar. Vamos precisar continuamente desse tipo de profissionais. O que espanta na internet é essa quantidade absurda de notícias mal apuradas e opinião de enfreada. Isso é produto da rede, é a novidade, o desafio. Como é que nós – não só jornalistas, mas a sociedade – vamos lidar com isso? Este é o problema. Se você escreve “Obama” no mecanismo de busca, terá notícias bem dadas
e mal dadas, opiniões abalizadas e outras rasteiras, difamações, elogios… Isso tudo misturado em função da “relevância”, o que significa quantas pessoas viram aquilo ou quantos links são apontados para cada um dos resultados da busca. Talvez se consiga chegar num algoritmo mais sofisticado, que nos dê uma relevância não apenas por quantidade, mas por alguma qualidade. Mas isso também não vai acabar com a mistura de informação confiável com outra sem nenhuma credibilidade. Esse é o desafio da democracia. Como, por exemplo, a Justiça vai enfrentar isso? O problema não é só moral, é legal. Qualquer um pode entrar na rede e difamar você.
Q: Um advogado recomendou que é melhor resolver conflitos da web na própria web, uma vez que a Justiça não entende nada do que está acontecendo pois não tem padrão para entender. Você concorda com ele?
R: Concordo plenamente. Nas últimas eleições, por exemplo, o Tribunal Superior Eleitoral determinou que o que vale para a televisão deve valer para a internet. Acho um absurdo, porque a internet não é uma concessão pública, como a TV. Os candidatos acabaram obedecendo, pelo medo de perder o mandato e, embora eu considere essa decisão absolutamente inconstitucional e ilegal, foi o que prevaleceu. Outro caso é o daquele vídeo da Daniela Cicarelli na praia com seu namorado. Houve um juiz que mandou fechar o Youtube no Brasil! Voltou atrás duas horas depois, até porque era uma medida inócua, pois o vídeo já estava espalhado pelo mundo.
“TODO MUNDO QUE PESQUISA NO GOOGLE
TRABALHA PARA O GOOGLE. CADA PALAVRA
DIGITADA VAI PARA ASUA BASE DE DADOS”
Q: Segundo o seu livro, a nova mídia colocou mais de 20 novos problemas éticos, sendo que os da mídia anterior não foram e talvez nunca sejam solucionados. Como se resolve isso? A Internet vai se autorregular?
R: As democracias precisam resolver isso. É um assunto complicadíssimo, porque a rede é mundial e, apesar de o mundo estar globalizado, as leis e os costumes são diferentes em cada país. Por exemplo: a Inglaterra, os Estados Unidos e a Austrália não têm lei de imprensa. Já o Irã e a França têm, e o Brasil está tentando acabar com a lei de Imprensa que vem da ditadura. Se falarmos de costumes, sabemos que em alguns países muçulmanos
o ladrão tem a mão cortada. Como se vai regular isso em termos globais? Muitas vezes uma informação é pueril num lugar e no outro é terrível. Além disso, você pode ser difamado em português mas o site estar hospedado na Rússia. Como apurar as responsabilidades? O Estado tem uma participação importante, e vai tentar regular. Não adianta achar que a web não precisa de lei nenhuma, pois, se há uma coisa que o Estado quer fazer são leis. Faz parte da sua natureza.
Q: Ainda existe diferença ética entre um blog e um slte de notícias, considerando que os blogs, embora sejam diários pessoais, também têm anúncios? Qual ética deve ser aplicada? A do jornalista ou a do cidadão comum?
R: A moral do jornalista sempre foi provisória, ou seja, há um abismo entre a teoria e o dia-a-dia – e isso não foi criado pela nova mídia. Por exemplo, muitas vezes o jornalista precisa usar a mentira para capturar a verdade. Ele se disfarça, usa câmeras ou gravadores ocultos. A ética do senso-comum não basta ao jornalista. E. se não basta ao jornalista, também não basta a ninguém que esteja fazendo comunicação, mesmo que seja um blog pessoal.
Q: E do ponto de vista das grandes plataformas? Nunca se teve tanta informação sobre os indivíduos, e sobre tantos indivíduos. Os servidores do Google e da Microsoft têm informações que representam um poderio imenso. Você acha que essas corporações vão resistir à tentação de usar esses dados para ganhar dinheiro, mesmo que ultrapassem limites de privacidade?
R: Isso já acontece. com a feliz e explícita concordância do usuário. Se for do interesse do ser humano, não há problema. Mas a sua pergunta é: e se isso for usado para o mal? Essa é a questão ética. Isso tem a ver com quem coordena a rede, quem domina a rede. Por exemplo. você acha legítimo que um único país (no caso. os Estados Unidos) tenha o domínio que tem sobre a rede mundial? Não é legítimo. Agora, você quer que a China, o Irã, ou mesmo a França. admínistre isso? Eu não quero. Quem vai administrar isso, qual comitê? Como seria formado, como seria dividido esse poder que é cada vez maior, quanto maís gente tem na rede? Essa questão é profundamente ética.
Q: Nunca na história se leu tanto, se escreveu tanto, se ouviu tanta música quanto hoje. Mas a indústria de mídla e entretenimento nunca esteve numa crise tão grave. Por que isso aconteceu? Como sair dessa crise?
R: Você tocou o dedo na ferida. A indústria tradicional da comunicação não está preparada e, mais do que não estar preparada, ela resiste em se preparar para a revolução digítal. Veja quanto tempo a indústria da música tentou segurar a maneira tradicional de produzir e vender CDs. até que a realidade de mercado acabou com isso. Essa indústria está se repensando, mas ela podia ter se repensado lá na segunda metade da década de noventa. quando já sabia que a questão digítal poderia levá-la à bancarrota, tanto que, do ponto de vista tradicional, de fato levou. Hoje ela está se refazendo, está tentando vender música pela internet, produzir shows. A indústria de mídia tradicional acabou permitindo que empresas desconetadas do negócio da mídia tomassem a ponta do processo. porque tinham capacidade de entender o que estava acontecendo. É o caso do Google, um caso típico de uso bidirecional da informação. Todo mundo que pesquisa no Google trabalha para o Google! Cada palavra digítada vai para a sua base de dados, que te devolve informações do seu interesse, portanto você se sente agradecido, clica de novo. aquilo vai de novo pro database…
Q: O Google nunca gasta um centavo para dizer que há um vídeo interessante no Youtube. Quem gasta é o usuário, que manda um email para o amigo com o link.
R: Isso é revolucionário, e veio de alguém que não estava ligado à mídia tradicional. Quem tinha o dever de ter construído o Google não era uma empresa correndo por fora, era a mídia tradicional.
Q: A web brasileira é uma das maiores do mundo. Por que a internet pegou no Brasil?
R: Tenho uma explicação que pode parecer trivial,. mas não é. Tem a ver com o DNA do brasileiro: o Brasil é um país que dá saltos, é um país em que as pessoas trabalham muito, conseguem driblar crise de uma maneira absolutamente criativa, basta ver quantos anos vivemos com inflação brutal e conseguimos continuar criando o país. E tem a ver com um outro fator: quando a internet começou a existir no Brasil. a primeira medida que se tomou foi não deixá-la ser uma indústria estatal. Tanto que hoje nós temos no Brasil uma das maiores concorrências na internet do mundo, com nove grandes empresas disputando o mercado.
Q: A TV Digital vai acabar com a internet?
R: A TV Digital e a internet serão praticamente a mesma coisa. A mãe de todas as mídias não é intemet, é a interação. Você interage não importa com o que tiver nas mãos: computador, televisão, celular, iPod… Não só com as outras pessoas, mas também com os diversos tipos de aparelhos. Quem está no centro da coisa é o indivíduo.
Q: Então é uma rede sem centro?
R: É. pode ser chamada assim.
“NA INTERNET, O JORNALISTA AINDA
É UM ATOR IMPORTANTE,
MAS NÃO É MAIS O ATOR PRINCIPAL”