A moral provisória no jornalismo

Publicado no Observatório da Imprensa, no blog Código Aberto, em 12/05/2009 às 4:29:35 PM

Carlos Castilho

Finalmente terminei de ler o livro Ética, Jornalismo e Nova Mídia, de Caio Túlio Costa[1]. Foram três semanas para explorar e digerir o conteúdo de um livro recém lançado e que deve provocar muita polêmica entre os jornalistas porque mexe fundo numa série de rotinas, crenças e valores da atividade.

Disse “finalmente” não porque o livro seja pesado ou chato de ler. Muito pelo contrário. É que ele nos obriga a refletir o tempo todo, tornando compulsória a releitura de parágrafos e capítulos inteiros para absorver toda a riqueza dos argumentos levantados por Caio Túlio.

Na minha maneira de ver, a idéia mais importante do livro é a de que não existe objetividade jornalística absoluta, o que desmancha o principio da imparcialidade e isenção, debilita os conceitos de certo e errado e nos conduz à ética como o recurso individual capaz de nos orientar na complexidade da avalancha informativa contemporânea.

Caio faz isso recorrendo a uma detalhada contextualização histórica na qual mergulha nos clássicos da Grécia antiga, mas também recupera autores cuja relevância foi ofuscada pela passagem do tempo. É o caso do alemão Tobias Peucer, autor da primeira tese de doutorado sobre jornalismo, nos idos de 1690, e de autores como Karl Kraus, Michel Cioran e Gilles Gauthier, que discutiram a questão da objetividade desde o século 19.

O subtítulo do livro (“uma moral provisória”), usado por Caio Túlio, está vinculado à sua constatação de que o jornalismo na era das novas mídias adota uma moral de conveniência, usando padrões que são condenados na teoria, mas aceitos na prática. O autor diz que os jornalistas atuais seguem a mesma “moral temporária” com que o filósofo francês Jean-Paul Sartre explicava suas mentiras bondosas para não provocar sofrimentos às suas namoradas.

O uso de fontes anônimas, microfones e câmeras ocultas seriam na verdade “mentiras justificáveis” em função de um interesse maior. Caio faz, no entanto, uma observação chave: a “moral provisória” seria uma imposição da indústria do jornalismo e não uma norma da atividade, cujos manuais não contemplam o uso desses expedientes.

A questão da objetividade é chave para o posicionamento do livro no debate de uma questão que é essencial para a definição dos novos valores do jornalismo. Ao fazer uma detalhada análise dos autores que trataram do tema, Caio engrossa a corrente dos que afirmam que a objetividade absoluta não existe. O jornalismo deixa, então, de ser uma fotografia da realidade para ser o oficio de representar representações. O jornalismo-fotografia é parte do conceito de que o profissional conseguiria reproduzir a realidade tal como ela é e não como ela a capturou.

A palavra “representar” é um termo herdado da academia para definir a construção de uma percepção da realidade, baseada nas percepções de outras pessoas, como acontece quando o jornalista entrevista testemunhas de um evento para produzir uma reportagem sobre este mesmo evento.

O questionamento da objetividade como valor absoluto é também reforçado por todas as teorias modernas sobre cognição e semiótica. Os estudos de cognição mostram que nós só conseguimos ver uma parte da realidade ao elaborar os mapas mentais que embasam nossas percepções. Num ambiente de avalancha informativa, a relativização da objetividade é ainda mais relevante porque a informação e a notícia passaram a ser dinâmicas, ou seja, estão em permanente modificação.

Caio Túlio cita Gauthier para mostrar que “a objetividade textual se refere à relação entre realidade e texto, à fase em que a realidade é codificada em signos. Credibilidade é a percepção do receptor sobre a relação entre a realidade social e a realidade midiática”.

A codificação em signos é um processo pessoal que está condicionado ao contexto individual. Logo, todo o processo de construção de credibilidade está também vinculado a esses fatores e influencia a percepção de quem lê uma notícia no jornal ou assiste a um telejornal.

Se não existe uma objetividade absoluta, a ética torna-se o principal parâmetro para um internauta definir o que para ele é certo ou errado, justo ou injusto. No momento em que os códigos de conduta e valores históricos passam a ser questionados severamente pela nova ecologia social da era digital, a discussão sobre ética passa a ter uma importância inédita em nossas vidas.

Já não se trata mais de impor os famosos códigos de ética que na verdade não passam de manuais de comportamento, mas de abrir espaços para a discussão sobre ética individual. O caminho para acharmos uma luz no fim do túnel da atual complexidade e caos informativo contemporâneo.

O livro de Caio Túlio propõe justamente isto: uma grande reflexão, preferencialmente compartilhada e coletiva, sobre o novo papel da ética na comunicação.

[1] Caio Túlio Costa foi o primeiro ombusdman da Folha de S.Paulo, ex-presidente do iG e ex-diretor do UOL. Tem o doutorado em comunicação pela Universidade de São Paulo e é prefessor de ética na Faculdade Cásper Libero, em São Paulo.

 

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