Um passeio pela história do movimento estudantil

Posfácio à Memória do Movimento Estudantil publicada pelo Museu da República (2005)

Caio Túlio Costa

Ao aprofundar as maneiras de ver o movimento estudantil, o seminário realizado em São Paulo por conta do projeto de recuperação da memória do mesmo, tocou no cerne das questões que mantêm este movimento social como uma grande interrogação desde sempre. Quando saem às ruas, os estudantes querem melhorar o ensino ou mudar o mundo? Eles têm maturidade para o fazer político? Enquanto pós-adolescentes, toda essa flama não se apaga quando adentram no mercado de trabalho?

Quando Arthur José Poerner – então jornalista e depois o mais completo historiador do movimento estudantil brasileiro – ouviu os ditadores dizerem que os estudantes não podiam ter participação política, ele foi pesquisar na Biblioteca Nacional e descobriu que a participação política estudantil existe desde o Brasil-Colônia, e não somente no Brasil. Os ditadores não queriam calar apenas os estudantes, mas também uma tradição.

Este seminário [realizado no Tuca, teatro da PUC de São Paulo, em 9 e 10 de dezembro de 2004], talvez o mais significativo mergulho na história, na cultura e na sociologia deste movimento social realizado nos últimos anos, veio trazer à tona o quão relevante esse mito político – no dizer de José Alberto Saldanha – incorpora mudanças à sociedade como um todo.

Quando se debruça sobre o sentido social da “internacional estudantil”, nas palavras da filósofa Olgária Matos (1), fica claro como esse movimento de colorações distintas, mas preocupações comuns, se espraiou pelas sociedades mais diferentes do mundo ocidental, em especial a partir da década de 1960 e, no Brasil, se transformou no batedor, na ponta-de-lança da mobilização política que, no final dos anos 1970 e começo dos anos 1980, enterrou uma das mais longas ditaduras militares da América do Sul, precipitando a redemocratização.

A movimentação política estudantil se produz em dimensão mundial em 1968 – acentuadamente na Europa. Naquele ano, a “vaga subversiva” atinge inúmeros países. França, Alemanha, Inglaterra, Irlanda do Norte, Polônia, EUA, Itália, Espanha, México, Brasil, Argentina, Uruguai, Nicarágua … Havia uma preocupação quase comum: a guerra do Vietnã, a luta contra a presença dos EUA no Vietnã, a manifestação pela retirada de suas tropas do território vietnamita. Isso catalisava estudantes da América e da Europa. “Os vietnamitas deveriam, sozinhos, trilhar seu próprio destino com as escolhas que fossem as mais convenientes para a sua população”, explica a professora de história Maria Aparecida Aquino. (2)

Na França, de um lado, os militantes organizados (em especial correntes trotskistas e maoístas – todas leninistas) iam à frente de um esquema bem organizado, rígido – pode-se dizer leninista. De outro, a grande massa que explodiu inteiramente por fora das correntes políticas e até contra o autoritarismo presente nas organizações de extrema esquerda e desenvolveu instintivamente uma estratégia nova, que contestava radicalmente tanto as estruturas repressivas do Estado democrático quanto as do contra-poder comunista. (3) O mundo vivia o auge da guerra fria e as nações comunistas estavam a dois passos do início da sua derrocada – que começou coma Primavera de Praga, quando a então União Soviética invadiu com suas tropas e seus tanques a Checoslováquia, cujo governo comunista ensaiava um comunismo humanista e um desligamento da URSS, sob a liderança de Alexandr Dubcek.

No Brasil de 1968, o ano do auge das manifestações estudantis no século passado, havia, de um lado, o poder militar na sua desagregação pré-recrudescimento da ditadura (que culminou com a edição do Ato Institucional número 5, em 13 de dezembro de 1968) e, de outro, os estudantes organizados como espécie de porta-vozes da estrutura partidária empurrada para a ilegalidade pela ditadura, à frente da grande massa estudantil, que havia se elevado contra o regime opressivo e viu-se sufocada pelos cinco anos seguintes, a fase mais tenebrosa da ditadura pós-AI-5.

A professora Aquino define duas fases distintas do movimento estudantil brasileiro: 1) a que se relaciona às lutas em defesa do ensino público e gratuito em todos os níveis e 2) a que vem com o renascimento do movimento estudantil na segunda metade dos anos 70 e que “representa o estopim para a reorganização dos movimentos sociais após a longa ressaca repressiva durante o regime militar”. (4)

Uma olhada na cronologia do movimento estudantil brasileiro mostra claramente que ele começa com reivindicações pedagógicas, adentra no nacionalismo ferrenho (como no episódio “O petróleo é nosso”, quando a UNE, financiada por Getúlio Vargas, apoiou o movimento de criação da Petrobrás), continua nacionalista, quando, por exemplo, a UNE está no palanque ao lado de João Goulart, e depois, sob o pretexto de melhorar o ensino, entra de cheio na questão política contra a ditadura, usa as ações culturais (como o teatro, via CPCs, Centros Populares de Cultura) como arma de “conscientização” dos estudantes e acaba assistindo grande parte de suas lideranças sonhar com a revolução socialista que não tinha mais sentido porque a derrocada do próprio socialismo já estava em marcha, principalmente com a citada invasão da Checoslováquia pelas tropas do Pacto de Varsóvia, para acabar de vez com a Primavera humanista que “ameaçava” fazer ruir a sociedade socialista.

Em 1960, o Brasil tinha 70 milhões de habitantes e somente 95 mil universitários matriculados. Em 1968, o país contava com cerca de 88 milhões de habitantes (crescera 26% em relação ao começo da década de 60) e a quantidade de estudantes universitários saltara para mais de 278 mil matriculados, um pulo de quase 200%. O regime militar conseguira elevar o número de universitários. Em 1970 (ainda com os militares no poder), a quantidade de matrículas ultrapassou um milhão. No final do século 20, quinze anos após o fim da ditadura, o ensino superior alcançava quase 2,5 milhões de matriculados.

Apesar de dobrar o percentual de universitários matriculados em relação ao total da população (era de 0,14% em 1960 e chegou a 0,31 % em 1968) e de quadruplicá-lo em 1970 (1,15%), o acesso da população aos cursos superiores no Brasil permanece irrisório, especialmente se comparado a países de primeiro mundo. Estudo da Unesco de 2002, que agrupava a população segundo o nível de instrução das pessoas acima de 25 anos, mostrava que, no Brasil, o percentual de pessoas com ensino universitário era de 5% em relação à população mencionada. Nos Estados Unidos, era de quase 32% e, na França, quase 37%. (5) Proporcionalmente, ambos os países de primeiro mundo têm mais de seis vezes universitários do que o Brasil.

Estes números mostram que apenas parte das classes médias realmente conseguiram acesso à universidade, primeiramente engordadas pelo regime militar e depois infladas pelo vertiginoso crescimento das escolas particulares, impulsionadas pelas condições econômicas e pelos regimes democráticos.

Numa mesa-redonda realizada vinte anos depois dos acontecimentos de maio de 68 na França, o escritor Jacques Baynac, autor de May retrouvé (ou “Maio reencontrado”, Lafont, 1978), tenta explicar o que para os franceses ainda permanecia um enigma: que força foi aquela que movimentou estudantes no mundo inteiro, gritando palavras de ordem tão significativas como “a imaginação ao poder”, “é proibido proibir”, “sejamos razoáveis, peçamos o impossível”, “sob as pedras, praia”, “o poder está nas ruas” ou “Marx, Marcuse, Mao”?

Para Baynac, o coração do enigma de maio estaria lá na famosa noite das barricadas no Quartier Latin, de Paris: “Eu acredito que 68 foi a verdadeira revolução na revolução, nada a ver com aquela anunciada por Regis Debray, mas aquela que, pela primeira vez na história, viu manifestar-se urna força subversiva criada pela abundância, e não mais pela miséria, uma força que não queria mais morrer pela revolução, mas viver graças a ela, urna força que queria mudar tanto o modo de vida quanto o mundo, mas que se recusava a tomar o poder para fazê-lo.”

Com a delicadeza que o distanciamento de duas décadas pode produzir, Baynac mostrou que, mesmo e apesar das organizações que dominavam a elite dos estudantes (todas de esquerda e divididas entre comunistas, trotskistas e maoístas), havia um desejo de mudança, um desejo que, no caso da França, acabou como crítica tanto das opressões dos regimes democráticos quanto dos ditos socialistas. Um desejo que vem não mais de miseráveis oprimidos, mas da juventude que mistura classes média e alta, todas bem-nutridas de comida e de idéias.

A “revolução na revolução” se dá de todas as formas, e sequer ícones da intelectualidade da esquerda foram poupados. O jornalista-filósofo mais incensado da França em todos os seus tempos, Jean Paul Sartre, acabou vaiado em 20 de maio, na Sorbonne, pelos estudantes: “Sartre, seja breve”. Na Alemanha, um pouco depois, o maior estudioso da dialética negativa, Theodor Adorno, um dos criadores da venerada Escola de Frankfurt, teve que fechar a escola porque sua aula acabou sendo interrompida pelos estudantes. O próprio Adorno se explicou numa carta dramática a Herbert Marcuse, na qual revela um diálogo cruel com o líder estudantil Daniel Cohn-Bendit: “Afinal, preciso defender os interesses do Instituto – nosso velho Instituto ( … ) Recentemente, o sr. Cohn-Bendit disse-me, durante uma discussão numa associação profissional, que eu só teria o direito de procurar a polícia se alguém quisesse espancar-me a pauladas; respondi que então talvez fosse tarde demais. O caso da ocupação do Instituto não permitia nenhum comportamento diferente do nosso. ( … ) A exigência que os estudantes me lançaram recentemente – fazer auto crítica pública -, considero-a puro stalinismo”.

No Brasil e no mundo, os estudantes lutaram por melhores condições de ensino, combateram a opressão e muitos deles tentaram a revolução: de 1968 a 1974, a universidade no Brasil foi o principal celeiro no qual as organizações armadas de esquerda iam garimpar os guerrilheiros urbanos e rurais, iam atrás de vocações – da mesma forma que se buscam vocações para a Igreja. Muitos estudantes responderam afirmativamente e tombaram em combate ou nos porões do regime. Outros sobreviveram, como os que foram trocados pelo embaixador americano seqüestrado, chegando depois ao poder, pelo voto e dentro da democracia.

Os estudantes continuaram sempre à frente, na função de batedores de movimentos sociais, na sua talvez forma intuitiva de adiantar desejos e necessidades. Estavam nas ruas na luta pelas eleições diretas e voltaram às ruas no processo contra o presidente Fernando Collor de Melo. Nos Últimos anos, retomaram uma antiga tradição, que lembra o antigo apoio estudantil a regimes populistas (como no caso de Getúlio Vargas) ou populistas de esquerda (como no caso de João Goulart), e saíram às ruas, liderados pela UNE (sempre sob o controle de um partido de tradição maoísta, o PCdoB), para defender o governo de Luis Inácio Lula da Silva quando o seu partido, o Partido dos Trabalhadores, viu-se imerso na mais densa denúncia de corrupção de que se tem notícia na história da República.

Instrumentalizados ou não por partidos, e a despeito de situações conjunturais que os colocam muitas vezes a reboque de forças em desagregação, o movimento estudantil de certa forma foi o primeiro – nos idos de 68 – a subverter valores sólidos, a mostrar que tudo, enfim, podia ser relativo – inclusive seus mais notórios ícones. Foram os estudantes que, no final dos anos 60, ajudaram a inaugurar a pós-modernidade, esta época em que as instituições realmente se desagregam e que tudo fica relativo. Mesmo quando abraça causas ultrapassadas, essa comunidade carrega uma força social capaz de mostrar à sociedade o quão realmente tudo é muito relativo.

Na França, os estudantes não derrubaram o governo do general Charles de Gaulle, mas conseguiram uma reforma universitária que os colocaram junto à gestão das universidades. Conseguiram mais: ser ouvidos, bater em mitos e deixar sua marca imaginativa. No Brasil, foram calados em 1968, mas retomaram as ruas a partir de 1973 e sempre estiveram à frente das movimentações sociais na fase da redemocratização. Na China comunista de 1989, a imagem do estudante à frente do tanque de guerra na praça da Paz Celestial virou emblema mundial pró-democracia.

Talvez os estudantes se encontrem mundialmente perdidos nos últimos anos. Porque ajudaram a criar uma sociedade que se globalizou e aumentou significativamente a desproporção entre as rendas; abriu o fosso entre ricos e pobres, triturou a noção de classe social, acabou alimentando a “under dass”, a subclasse de gente miserável e explorada. Ao colocar em dúvida os valores tradicionais, os estudantes fazem mais do que imaginam, mesmo que no começo do século 21 se sintam pequenos, desorganizados e sem voz – porque tanto a tribalização do mundo pós-moderno quanto o poder da informação foram inconscientemente desenhados por eles quando pediram a imaginação no poder. Resta ver se ela, a imaginação, será capaz de dar outro sentido ao mundo, com ou sem a ajuda de estudantes organizados.

Notas

(1)    Apud Maria Aparecida Aquino (“Nós que amávamos tanto a revolução”; págs, 31 a 39) no livro Memória do Movimento Estudantil, organizado por Carla Siqueira, Angélica Müller e Ana Paula Paula Goulart Ribeiro (Rio de Janeiro: Editora Museu da República, 2005).

(2)  Idem.

(3)  Ver Jacques Baynac, Hervé Le Bras, Henri Henri e Paul Yonnet na “Table Ronde” da revista Le Débat número 50 (Paris: Gallimard, 1988. Pags. 61-77)

(4)    Ver Aquino, idem nota 1.

(5)    www.uis.unesco.org/TEMPLATE/htm l!Exceltables! education/View _ Table_discpop_edu_attainment.xls

Compartilhar