Uma entrevista imaginária com um internauta nova-iorquino
Dim Upshaw é um internauta nova-iorquino. Não há como afirmar a sua realidade, nem mesmo a virtual. Diz ter 23 anos. Não possui deficiência visual ou auditiva e carrega peculiaridades jamais suspeitadas. Seria o que se pode chamar de uma pessoa saudável do ponto de vista da saúde física. É o protótipo de uma geração “alfabetizada” apenas por imagens e símbolos. Ela dispensa a escrita na forma tradicional. Não lê, não usa e-mail, nem mensageiro instantâneo. Na internet, se comunica por voz e vídeo. Vive bem, ganha a vida normalmente. Fiz algumas perguntas para o Dim durante uma conversa ao vivo na rede. Seu modus operandi é de arrepiar.
1. É verdade que você nunca foi alfabetizado?
Dim Upshaw: Sim, nunca fui à escola. Não precisa. O mundo é imagético, os símbolos dispensam a alfabetização. A experiência é tudo. Se você consegue se expressar bem em alguma língua, não precisa ler nem escrever. Só escrevo para assinar meu nome, que, por sinal é um belo ideograma, muito bonito mesmo. Lembra alguns desses pequenos traços que vocês chamam de letras. Eu sou o maior exemplar vivo da web semântica, essa coisa que liquidifica símbolos, imagens, sons e até letras. Foi tudo muito intuitivo.
2. Você contou que mora só. Muito bem, como você faz para reproduzir uma receita de bolo?
Dim: Bem, não há problema. Pego o meu DVD de receitas e sigo as instruções do vídeo.
3. Entendo. Mas como você escolhe o DVD?
Dim: Pego o que tem foto de receita na capa, mas eu consigo visualizar o sentido de determinados símbolos que vocês chamam de palavras.
4. Você andou citando autores como o escritor Jack Kerouac e a poeta Silvia Plath. Vai dizer que não os leu?
Dim: Cara, nunca os li. Eu os ouço. Tenho todos os áudio books deles. Tenho frêmitos com a Plath: “What ceremony of words can patch the havoc?” (Qual cerimônia de palavras pode remendar a devastação?).
5. Não me convence. Como você se vira para andar na rua, ler as placas, orientar-se no metrô, na estrada?
Dim: Vocês, colonizados pelo velho alfabeto, pensam em forma de letrinhas que combinam. O teu pensamento conjuga letrinhas. Eu penso com a imagem da palavra. Cada nome de rua, cada nome de cidade é uma imagem para mim. Vocês lêem a palavra Dallas. Eu a vejo como um bloco só, um símbolo. Quando não conheço algum símbolo, pergunto o que significa aquela imagem e alguém me diz. Não precisa mais nada.
6. OK, mas isso não te tira a independência, a possibilidade de entender as coisas por si só, sem precisar de ajuda?
Dim: Bem, então me explique: os humanos fazem tudo sozinhos? O conhecimento não é uma acumulação de experiências trocadas entre os homens?
7. Vou tentar de outra forma. Quando você precisa ler e entender um assunto de biologia ou de matemática, por exemplo, saber contido num livro, como você faz?
Dim: Eu não preciso desse tipo de conhecimento. Se precisar, já te disse. Eu compro, alugo ou vou a uma biblioteca para ver um áudio book sobre o assunto. Quando a coisa aperta, peço para alguém me explicar. Quando somente existe na velha forma de letras eu passo as letrinhas pelo software de leitura do meu Mac.
8. Você conhece o trabalho da canadense Sonja Elen Kisa, de 28 anos, que desenvolveu uma língua artificial, a Toki Pona, que usa apenas 120 palavras? Isso te toca de alguma forma?
Dim: Ah, você também a conhece? Tá fazendo barulho. Na verdade, são os últimos estertores dos super-heróis da linguagem. Na impossibilidade de ultrapassarem-na, agora eles querem comprimi-la. Mas o fazem exatamente com esse instrumento démodé que usa as letras. Muito melhor usar imagens. O mundo aprendeu a conviver com as imagens. Otto Neurath, um intelectual vienense que morreu em 1945, foi mais feliz quando criou as imagens-mãe de todo nosso sistema imagético, os Ysotypes.
9. Como você conseguiu emprego? Aliás, qual o seu emprego?
Dim: Eu sou artista, trabalho com desenhos, faço instalações, pôsteres, o que aparecer. Antes que você me pergunte: conta eu faço, e muito bem.
10. E quando teu cliente te pede um relatório escrito?
Dim: Eu dito o relatório para o meu computador que o transforma em palavras.
11. Não sei, não. Como você faz com os filmes estrangeiros? Você não lê as legendas…
Dim: Não falo outra língua, adoro cinema, adoro cinema alemão, detesto o ritmo do cinema francês. Quando é filme estrangeiro, procuro as versões dubladas. Quando não dá, eu tento entender pelas imagens, mesmo.
12. Seus pais não ligam para esta forma de, digamos, ignorância?
Dim: Ignorância do quê? Eu trabalho desde os dezesseis anos, ganho mais do que eles… Me recusei a ir à escola quando tinha cinco anos. Nunca fui e nunca precisei ir.
13. Mas os seus pais dirigem carros, lêem livros, escrevem normalmente. E seus filhos? Sua namorada?
Dim: Quem precisa ter carteira de habilitação em Nova York? Filhos, ainda não tenho. Eles não precisarão de alfabetização também. Não deixarei que isso lhes aconteça. Minha namorada me adora, mas ela é daquelas que ainda lê, tomada pelo sentimentalismo da alfabetização. É hábito, né?
*Caio Túlio Costa é jornalista, presidente do Internet Group (iG, iBest e BrTurbo). Texto originalmente publicado na edição de 10/9/2007 do semanário Meio & Mensagem, pág. 10.