Sobre Paulo Francis, um ficcionista de imprensa
Capítulo 11 do livro Ombudsman – O Relógio de Pascal
Caio Túlio Costa
Quando aceitei o cargo de ombudsman sabia que teria de enfrentar o problema. Ignorar o fenômeno Paulo Francis – talvez o colunista de jornal mais agressivo e mais polêmico que o Brasil já teve – seria comprovar a debilidade de quem tinha obrigação de criticar o jornal. Eu vislumbrava também as conseqüências de qualquer crítica a ele, e previa a possibilidade de trovões e tempestades. Nada do acontecido, salvo a retirada de Paulo Francis, esteve muito além do previamente imaginado.
Previsibilidade possível frente a um estilo marcante e marcadamente cansado. Deixar de comentar o estilo Paulo Francis seria, antes de tudo, perder o respeito de leitores, profissionais da imprensa e amigos.
Um intelectual argentino, Horácio González, comparou-o certa vez, generosamente, a Karl Kraus, o terror de Viena, intelectual único na combinação de literalidade e indignação, senhor do dom de condenar os homens por meio de suas próprias palavras, aquele ser cuja capacidade maior era a de fazer as pessoas abrirem os ouvidos – na imagem de Elias Canetti. Alguém com o peito de afirmar: “O censo demográfico constatou que Viena tem 2.030.834 habitantes. Ou seja, 2.030.833 almas e eu”.
Parecido ou não com Karl Kraus, Francis poderia dizer o mesmo sobre o censo demográfico do Brasil. Milhões de almas menos uma, a dele. Porque Paulo Francis era um personagem singular, marca radicalmente distinta do delicado e atencioso cidadão Franz Paulo Trannin Heilborn, nascido em 2 de setembro de 1930. Trotskista na juventude, Francis (pseudônimo que virou grife, dado por Paschoal Carlos Magno quando ele era ator de teatro) amadureceu fascinado pela aristocracia e, também na condição de legítimo objeto de análise de Karl Kraus, entrou em decadência como o mais paradoxal dos filisteus – porque não é de espírito estreito. E a decadência, como se sabe, exerce extraordinário fascínio.
“Petismo, Paulo Francis e o mito de Narciso” foi o título da primeira coluna na qual abordei o fenômeno, em novembro de 1989, dois meses após assumir a defesa dos leitores e durante campanha eleitoral para a presidência da República, segundo turno, Fernando Collor versus Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores, o PT. Nela, discorria sobre a fama de petista granjeada pela Folha. A manchete do dia 16 de novembro, em que o jornal apontara Collor versus Lula no segundo turno (com base em pesquisa de boca-de-urna) reforçara convicções a respeito do “petismo” do jornal. Isto porque foi o único a bancar resultado aparentemente inverossímil em virtude da gangorra de números da Rede Globo, apontando ora Leonel Brizola ora Lula como adversário de Collor.
Senti-me obrigado a discutir o assunto em público. Antes, eu havia registrado que a Folha, para se mostrar imparcial, acabara sendo parcial com todos os candidatos. Escrevi: “Manteve Collor sob marcação cerrada, desinflou números das multidões do PT, interrompeu por sua conta a campanha do Brizola, exagerou ao ver mentiras onde Maluf não havia mentido, combateu a serenidade de Mário Covas – enfim, fez o diabo para falar mal de todos”.
Considerei o jornal presa de dilema cruel: como provar não ser petista sem provocar reações de que “collorira”?
Nesse momento, caiu como uma luva a incontinência verbal de Francis (a imagem é do jornalista Sérgio Augusto), chamada em auxílio na tarefa de isolar a imagem petista. Ninguém do jornal solicitou ou pautou a interferência, obviamente. Veio de forma natural e acabou muito bem aproveitada na primeira página, em operação não planejada, mas bem sucedida, conforme se podia depreender de simples observação.
O candidato Collor deu entrevista, no Sul, acusando os eleitores de Lula de “eleger uma proposta radical, que prega a revolução armada e a conquista do poder pelo derramamento de sangue”. Virou manchete: “Collor diz que PT prega banho de sangue”. Paginaram-na em conjunto com excerto de uma crônica de Francis, para auxiliar na composição anti-PT: “Lula coloca o país no nível da Nicarágua”.
Critiquei, em público: “A manchete do banho de sangue é discutível – porque Collor não usou a expressão ‘banho’ –, mas jornalisticamente correta. O uso do texto do Paulo Francis na capa, no entanto, provocou polêmica, deu o que falar. Provou que, naquele dia, deu certo a estratégia de bater no Partido dos Trabalhadores”.
38 leitores (de total de 69 telefonemas atendidos em dois dias – bastante porque eu conseguia atender a uma média de 30 ligações, das 14h às 18h, de segunda à quinta) ligaram para reclamar do jornal e de Francis. Eram simpatizantes do PT, só três fizeram questão de afirmar nada ter a ver com o partido. Todos se queixaram do “exagero” da manchete, da “brutalidade” cometida por Francis contra Lula na sua crônica e do destaque dado a ela na primeira página. Do ponto de vista do jornal, portanto, em função da repercussão e conseqüentes reclamações provenientes dos petistas, uma operação muito bem sucedida.
Expliquei na minha coluna de domingo existir diferença sutil entre o Francis dos primeiros cadernos e o da Ilustrada, o caderno de artes e espetáculos. Ali ele tinha coluna de uma página inteira, duas vezes por semana, coisa única na imprensa brasileira em todos os tempos. Escrevi:
“Ele conquistou este espaço por força de suas idéias e de um texto tonitruante. Francis é talvez o único jornalista brasileiro sobre o qual todos os leitores têm uma opinião. A favor ou contra, mas uma opinião. Mesmo quem o detesta o lê. Recebi telefonemas de leitores sugerindo que a Folha deixe de publicá-lo, atendi delegação de negros pedindo que a Folha censure suas afirmações preconceituosas. Para fazer esses pedidos é necessário lê-lo.”
Ia mais adiante: “Não se deve cobrar jornalismo neste tipo de artigo que o Francis faz. Ali ele é mais o Francis ficcionista, o cronista dos tempos. Diz besteiras e coisas sábias. Escreve o que muitos pensam e não ousam falar em voz alta. É preconceituoso, vulgar, chuta alguns dados, é o Paulo Francis de sempre – irreverente e destemido. (…) Francis não tem compromisso com ninguém, a não ser com sua cabeça, cuja memória e capacidade de reflexão poucos brasileiros possuem igual”.
Ele entendeu como ninguém o artigo do ombudsman. Em sua próxima coluna, sob o título “Patrulhas do Lula”, se deu ao trabalho de responder a um “ataque” e então “lustrar uma obscuridade”, eu, “o que havia jurado não mais fazer há anos”.
Para Francis, eu tinha sido um “bocado condescendente” com ele. Perguntou se a obscuridade tinha “currículo ou gabarito” para isso. O “lugar-comum” tomado “emprestado” de Sérgio Augusto, a incontinência verbal, era “linguagem de macho”. Eu estaria ensinando jornalismo “mal” aos “jovens da Folha”. Pedia também a relação das besteiras que eu o acusara de escrever.
“Até os elogios de Caio Túlio me caíram mal. Ser chamado de ‘irreverente’, really, a essa altura de minha vida profissional. O leitor não só nunca encontrará essa palavra num texto meu, como pergunto: a que se deve ser reverente? A Ribamar [maneira como ele se referia a José Sarney, então presidente da República], a esse nome de polvo e ponta-esquerda, esse semi-analfabeto, com o charme discreto do proletariado, que é Lula? Ele, de resto, que não é ‘patrulha’ de si próprio – como Caio Túlio parece ser, de Lula”.
Não parava aí. Fui chamado de “piolho”, acusado de ter deixado a função de ombudsman (“nome horrendo”) subir à minha cabeça, de ser “jovem demais” para “receber tanta adulação”, de estar empenhado na tentativa de assumir o papel “pretendido” por Cláudio Abramo, de “mediador das disputas da esquerda”. Como parte dos “petelhos” da redação, eu teria “problema afetivo, sexual, em suma”. Terminava assim: “Mas não me incomodo de confessar que acho uma grande vileza, no meu próprio jornal, eu ser atacado de maneira tão fuleira e insolente por um colega e suposto amigo”.
De fato, éramos amigos.
Trabalhar no mesmo jornal não me atava corporativamente a ele, nem a ninguém, a ponto de impedir a crítica. Ela tinha sido feita e eu não estava disposto a alimentar ataques pessoais. Kraus definiu o jornalista, num de seus aforismos, como aquele que exprime o que o leitor, de resto, já tinha pensado. Estava contente em ter feito algo parecido, registrei na coluna minha disposição de não responder aos ataques e sustentei continuar admirando o Francis “ficcionista e jornalista”. Previdentemente alertava: “Como muitos outros jornalistas brasileiros, Francis não está preparado para receber críticas”.
Francis havia se referido ao ombudsman em coluna anterior, porque apontei, em crítica interna, uma notícia dada por ele com sete dias de atraso, publicada originalmente em O Estado de S. Paulo e no Jornal do Brasil. Ele informara sobre a queda do valor do título da dívida externa brasileira para 27% de seu valor nominal.
O JB falara em 25% e o Estado em 28%. Ele não gostou nada do comentário interno. Escreveu na Ilustrada: “Waal, Caio, sacaram. Não deveria ser sem surpresa. O Estado tirou de manchete o Brasil da moratória cinco vezes antes que saísse verdadeiramente. Um acordo que foi feito por Delfim, Pastore e Galvêas [Antonio Delfim Netto e Afonso Celso Pastore foram ministros de Estado e Ernane Galvêas foi presidente do Banco Central durante a ditadura militar] foi denunciado como infactível pelo JB pelo menos três vezes, de primeira página, uma provocando queda da Bolsa do Rio”.
Francis estava atento ao meu trabalho (interno e público) e não dava o braço a torcer nem quando pego em flagrante “barrigada”, por menor que fosse.
Nessa época, final de 1989, em virtude das eleições presidenciais, Francis passou a escrever mais sobre o Brasil. Isso, naturalmente, expunha-o mais aos olhos da terra. Era mais difícil pegar seus erros e contradições quando falava de livros pouco conhecidos ou não editados no Brasil, ou de assuntos de política internacional de difícil checagem. Outra coisa, mais palpável aos leitores, era comparar suas informações sobre a economia brasileira ou suas opiniões sobre o Brasil, baseadas em fatos distorcidos. Os erros emergiam com mais facilidade. Num artigo publicado na revista da Intercom (Revista Brasileira de Comunicação), revelei que somente contra a crônica na qual ele acusava Lula de não saber usar o verbo enriquecer, e falava enricar, provocou 15 cartas à seção dos leitores da Folha.
Infelizmente para Francis, o verbo enricar existe, é clássico, está nos dicionários. Os preconceitos, o racismo e os chutes, tudo se evidenciava mais quanto mais perto ele estava da palpável (e miserável) realidade brasileira.
Continuei registrando na crítica interna os problemas técnicos aparecidos na sua coluna. Foi quando, numa quinta-feira de fevereiro – dois meses depois da primeira tempestade – recebi estranho telefonema de leitor de Goiânia, o industrial Ronaldo Zica. Ele queria saber por que a Folha tinha “censurado” trechos do artigo de Francis cuja reprodução no jornal local, O Popular, com direitos de republicação, alinhava dois parágrafos além dos da contracapa da Ilustrada do mesmo dia.
O leitor leu ao telefone trecho omitido: “Outro dia por exemplo vi a seguinte manchetinha na Folha: ‘Inauguração do McDonald’s ofusca a visita de Collor a Moscou’. Pura bobagem. Uma coisa nada tem a ver com a outra. Os russos estão com a fome que estes esquerdistas fuleiros e piroquetes gostariam que houvesse no Brasil se todo o abastecimento fosse estatizado, mas a inauguração do McDonald’s (que em geral ‘europeu’ nem chega perto aqui) nada tem a ver com a visita de Collor, que não é um acontecimento popular, e, sim, de Estado, como se diz, e ele teve do governo soviético uma recepção de primeira, e Gorbatchev comparou seu programa enunciado (até agora, apenas enunciado) à Perestroika. (…) Tivesse este jornal um crítico interno e é claro que teria chamado às falas o autor da manchetinha. Algum dia talvez a direção resolva instituir o cargo de crítico. Esperemos – e não aguardemos – com fé”.
Tudo indesculpável, tanto os comentários quanto o fato de terem censurado o trecho. Levantei o assunto na coluna de 18 de fevereiro de 1990. O diretor do jornal, Otavio Frias Filho, deu-me, por escrito, as razões do corte na coluna de Francis, procedimento nada usual. “A pluralidade de pontos de vista faz parte do projeto editorial da Folha e poucas publicações em todo o mundo podem igualar-se à Folha quanto ao espaço e importância que ela reserva à autocrítica e à publicação de opiniões contrárias às suas”.
Ele completava: “Paulo Francis pretendeu publicar um ataque à política do jornal em relação ao futuro governo e à instituição do cargo de ombudsman sem que suas considerações fossem previamente submetidas aos órgãos centrais da redação: a secretaria e a direção. Daí a razão dos cortes em sua coluna de 15.2.90 na Ilustrada. Caso esses órgãos centrais abrissem mão dessa sua responsabilidade, resultaria impossível planejar, coordenar e dirigir a operação complexa da edição de um jornal como a Folha”.
Critiquei a atitude do jornal. Francis conquistara o direito de escrever bobagens. Essa seria apenas mais uma, não faria diferença. Considerava a opinião de Francis, qualquer uma, publicável. Os leitores davam o desconto.
Algo, porém, precisava ser desnudado: o movimento de distorção da informação para se chegar a determinada opinião, uma das deformações profissionais do articulista. No trecho cortado, ele ironizava com a “inexistência” do crítico interno. O mais surpreendente é que a “manchetinha” sobre o McDonald’s foi observada, sim, pelo ombudsman na crítica interna, datada de 1o de fevereiro e recebida por Francis em Nova York. Ou ele fez a afirmação sem conferir na crítica, atitude reprovável em qualquer jornalista, ou mentira para atacar.
Afirmei que o jornal deveria ter destacado na capa a afirmativa de Gorbatchev segundo a qual não renunciaria ao cargo de secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética. Considerei a negativa de Gorbatchev mais importante do que a fila na inauguração do McDonald’s. Disse mais: a Folha optara pela “coluna social” da viagem de Collor em vez de mostrar o essencial. Acusei o jornal de “imperícia” na manobra.
Bem, decidi ampliar minha crítica a Francis. No fundo, o bom entendedor percebeu, refiz as mesmas observações de dezembro. Só coloquei-as sob lupa, enfatizando detalhes. Repensei minha opinião sobre o jornalista Francis e cheguei, definitivamente, à conclusão de que nenhum texto de sua autoria podia ser considerado jornalístico, porque a maioria era filtrada por visão distorcida da realidade. Não seria praticando pequenas cirurgias, como aquele corte, que o jornal iria resolver o problema. Olhando de longe, bati forte: “Caso os preconceitos dele contra crioulos, homossexuais e nordestinos fossem levados ao pé da letra, e aplicada a lei de imprensa em vigor no Brasil, Francis teria acumulado mais de cem anos de cadeia. A tolerância da Folha, dos leitores e da justiça é tamanha que ele pode esgrimir seu racismo sem maiores danos do que uma resposta ou outra na imprensa. Sorte dele.”
Discorri sobre o escritor Francis, o mesmo não dera muito certo nos livros de ficção (nunca foi um best-seller como Tom Wolfe, comparando-o com quem ele se mede), mas tivera sucesso na imprensa. “Suas crônicas (tudo o que ele escreve é crônica, não pode ser absorvido como análise ou notícia) valem o quanto vale um jornal nas suas poucas horas de vida”. Mais: “Talvez daqui a cinqüenta, cem anos, descubram algum outro valor neste amontoado de chutes misturados a opiniões quase sempre geniais. Mas, por enquanto, ele é diversão de jornal. Pouco importa que o índice de leitura de seus textos tenha despencado dos 96 pontos para 36 pontos na pesquisa sobre o perfil do leitor da Folha, realizada em 1989. Mesmo que o critério de aferição tenha sido modificado, uma coisa é patente: ele perdeu o posto de colunista mais lido na Folha para Joelmir Beting”. Esse índice final de leitura, bem como a queda, a propósito, tudo contestado por Francis na época da “polêmica”, foi confirmado pelo jornal em dezembro de 1990 em notas na seção Painel.
Voltando ao caso: dei exemplo real de uma das inúmeras distorções de informação por ele operada. Quando o então prefeito de Washington foi preso em flagrante consumindo droga, em janeiro de 1990, Francis “analisou” o fato concluindo que a administração de Marion Barry, o prefeito, fora “um desastre” – em desacordo até com o jornal por ele considerado o “mais influente” do ocidente, The New York Times. Ele justificou a má gestão pelo fato de o prefeito ter ficado “em pleno sol” assistindo ao futebol na Califórnia, “bebendo cerveja”, sem dar satisfações sobre uma nevasca que tinha isolado o Pentágono. Se a realidade não batia com a análise de Francis não tinha a “menooorr imporrrtância” – escrevi, tentando imitar seu jeito de falar na televisão –, Francis muda a realidade para adaptá-la às suas conclusões. O Pentágono não está na cidade de Washington, mas na cidade de Arlington, fora da jurisdição do prefeito. Marion Barry nada tinha a ver com a coisa. Seria o mesmo acusar de desastroso o prefeito de São Paulo por nada fazer contra inundação por chuva em Guarulhos. Eu havia apontado essa desinformação em crítica interna, como várias outras.
Os leitores continuavam arrumando tempo para registrar falhas cometidas por ele. O Painel do Leitor, a seção de cartas, dava vazão a muitas dessas observações. Em um mês, dezembro de 1989, recebeu 182 cartas sobre Francis; 153 contra, 18 a favor. Publicou 18 contra e 4 a favor. Eram erros cabeludos. Apontei: “Ele não consegue escrever certo palavras em francês, torce citação até de Shakespeare, se mete a falar de entropia e solstício sem a menor noção do significado de cada palavra, confunde juros mensais com juros diários, cita números absurdos sobre a economia brasileira…”
Entrei em assunto mais delicado. Francis costumava soltar teorias apocalípticas na Folha e desdizê-las nos comentários para a Rede Globo de Televisão. Durante as comemorações do bicentenário da Revolução Francesa, em Paris, eu mesmo tive a oportunidade de ouvi-lo ditar para a Folha artigos desancando com a reunião de cúpula (“dentro de uma semana esta cúpula será varrida da memória como as outras”) para alguns minutos depois gravar comentário exatamente oposto para a Globo. O que era um “nada” virava “expectativa” de que alguma coisa poderia acontecer. E fui à ferida: “Ele gosta de falar mal da Folha na Folha, mas deixou de falar mal da Globo. Já se vão anos (foi em 14 de janeiro de 1971, no Pasquim) que xingou Roberto Marinho [então vivo, dono das Organizações Globo] de ‘um homem chamado porcaria’. Disse que ‘esgoto’ era ‘uma imagem inexata de RM’. A imagem correta ’seria poluição pura, inútil e letal’”.
Expliquei que os elogios feitos então ao presidente eleito, Fernando Collor, precisavam ser entendidos mais pela sua subserviência para com pessoas brancas, bem vestidas e que o tratavam gentilmente, do que por uma admiração catatônica pelo poder ou bajulação indireta de Roberto Marinho. Tratava-se de preconceito às avessas. Se o presidente Sarney lhe tivesse dirigido um aceno qualquer de simpatia, ele teria mudado radicalmente o discurso público contra o “Ribamar”.
Sobrou espaço para elogio: “Não pense que Francis tem compromisso com alguém. Ele se compromete apenas com a sua cabeça, esteja ela em situação boa ou precária – como ultimamente. Para usar termos que trouxe à baila, invocando a memória de Cláudio Abramo, ele tem mesmo coragem de dizer o que pensa”. Soltei o defeito: Ele não pensa o que diz.
Realmente, se ele realizasse ligeira releitura de seus artigos antes de publicá-los, se checasse dados, se verificasse a realidade para não deformá-la, seus textos seriam outra coisa. “Jornalismo, quem sabe. Imbatíveis, talvez”.
Finalmente, recomendava seu consumo enquanto ficcionista de imprensa. Tratava-se de um ranzinza acometido de senilidade precoce na infância e atacado na idade adulta por infantilismo tardio, o mote para o título da coluna, “Sobre Paulo Francis – ou o infantilismo tardio”.
Era pesado o artigo, reconheço. Assumi o tom proposto por Francis. No entanto, salvo no final, as críticas eram fundamentalmente técnicas, detectando as informações deformadas para atender interesses diversos, da preguiça à necessidade de elogiar algo num veículo ligeiro (como a televisão), e atacar a mesma coisa em outro mais denso (como o jornal).
A reação veio na forma de milhares de decibéis acima, em matéria de baixaria e ataque pessoal. Virei nada menos do que “um canalha menor”. Segundo Francis, quando o critiquei em novembro de 1989, eu estava sendo ardiloso para salvar a cara de Lula. “Caio Túlio Costa é um quadro do PT e estava cumprindo o que se chamava no velho PC de ‘tarefa’, não servia a este jornal [a Folha], mas ao PT”. Lamentava: “Caio Túlio se propunha explicar aos leitores petelhos do jornal quem era eu, com as minhas ‘excentricidades’, e que eu não deveria ser levado a sério como jornalista”. Acusava o golpe: “O maior insulto que se pode fazer a um jornalista”. Na seqüência, desfiava uma série de acusações pessoais, artimanha universalmente manjada de responder a críticas tentando desqualificar o crítico. Ou seja, não responder aos aspectos técnicos levantados na crítica e contra-atacar não as idéias, mas a pessoa do crítico. Veja:
• “Afinal, quem é Caio Túlio? Desponta para o anonimato. Só é conhecido de um círculo restrito de redações de São Paulo, no Rio não convém arriscar uma pergunta sobre sua identidade. É ignorada.”
• “Eu sou bom. Caio Túlio é ruim. Eu sou famoso. Ele é obscuro.”
• “Ganho muito mais do que ele e por ter ocupado um cargo de chefia neste jornal, Caio Túlio sabe.”
• “Eu estou no ápice da minha carreira. Ele é apenas um bedel de jornal.”
• “Caio Túlio não é jornalista e é extremamente ignorante, nada sabe de relações internacionais, por exemplo, em que analisa o peso de um país em face do outro. Jamais se encontrará um artigo dele sobre o assunto, aposto no escuro – porque nada sabe a respeito.”
• “Acabei dando-lhe uma lambada em resposta ao primeiro artigo, não continha um único ataque pessoal. Era violento, mas intelectualmente. Ele não respondeu. Botou o galho dentro, como se diz.”
• “Fico imaginando aquela cara ferrujosa de lagartixa pré-histórica se encolhendo às minhas pauladas. Caio Túlio me causa asco indescritível, não posso garantir que se o encontrar não lhe dê uma chicotada na cara, ou, não, palmadas onde guarda seu ‘intelecto’.”
• “Tenta me deixar mal com a direção da Folha e da TV Globo, minhas duas fontes de subsistência. Tenta me intrigar com as duas empresas. É a autodefinição do alcagüete e do canalha menor.”
• “Sua fúria, mal-reprimida, me ameaça com mais de cem anos de prisão, se a Lei de Imprensa fosse cumprida, pelos meus preconceitos contra homossexuais, negros e feministas. Se tivesse um mínimo de cultura saberia que é nos preconceitos que revelamos com mais clareza nossos instintos e simpatias. Mas o que é Pascal para um petelho?”
• “Caio Túlio é menosprezado e ridicularizado por todos os seus colegas, a quem persegue com mesquinharias suburbanas de bedel. Nunca ouvi uma opinião favorável. Não inspira ódio. Só se odeia quem se respeita.”
• “Disse a mim quando cobrimos juntos a cúpula econômica, que não era jornalista, não sabia escrever, que essa não era a sua vocação. Sua mulher, filho e sogra devem ter cansado de ouvi-lo. Concordo.”
• “Caio Túlio voltou de Paris um homem ridículo. Evita seus mais íntimos amigos porque sabem porque ele é ridículo e sua presença aumenta seu ridículo pela lembrança.”
Não preciso dizer o quanto minhas observações calaram fundo na sua alma. Francis ensandeceu com a história e colocou um abacaxi tremendo na mão da direção do jornal.
Em reportagem sobre o caso, “Guerra de extermínio”, a revista Veja concluiu que “raras vezes se chegou na imprensa a tais extremos de agressividade”. A revista interpretou o caso como se ambos julgássemos o oponente incapaz da prática de jornalismo e, por isso, os dois estariam enganando o leitor se ambos estivessem certos; ou um dos dois estaria enganando, na hipótese de um deles estar certo.
Tanto a revista Veja como outras publicações que trataram do assunto se recusaram – talvez por medo, os jornalistas em geral temiam Francis e tremiam com a sua fúria – a ver o óbvio de minhas críticas. Eu simplesmente sintetizara para os leitores aquilo que eles próprios sabiam, muitos inconscientemente: Francis devia ser consumido enquanto cronista e jamais como jornalista.
Não foi à toa que dez meses depois toda a campanha de divulgação da compra do passe de Francis, feita pelo Estado, vendeu a nova contratação como a de um colunista, cronista do Caderno 2, embora ele mais tarde mandasse textos para o primeiro caderno – conforme, aliás, eu sugeri ao Estado, em coluna pública, para levantar o moral do articulista.
Pois muito bem. Com a resposta naquele nível o problema Francis x ombudsman ganhou outra dimensão para o jornal. Eu não estava disposto a jogar lenha na fogueira, interminavelmente, mas os ataques pessoais haviam sido muito fortes e era necessária alguma resposta, algo que mostrasse a diferença. Ben Bagdikian, no ensaio “A saga de um ombudsman de imprensa”, formara jurisprudência para o caso. Se um repórter ou editor discordam do ombudsman e o ombudsman continua achando que está certo, “o repórter ou editor tem o direito de réplica, preferencialmente lado-a-lado, no mesmo dia da coluna do ombudsman”.
A direção do jornal não tinha conhecimento dessa indicação, feita 18 anos antes, e, coincidentemente, adotou saída semelhante com base no Manual Geral da Redação. No domingo, 25 de fevereiro de 1990, uma chamada de capa – “Intervenção termina com polêmica” – dava por encerrado o caso. “Conforme o Manual, os dois jornalistas se despedem do tema com a edição de suas considerações finais”.
Eu aceitei a decisão e até achei-a boa. Ficou claro, entretanto, que a liberdade do ombudsman de criticar qualquer jornalista, Francis incluído, continuava de pé, como continuou. Estava encerrado aquele “tema”. O artigo de Francis, editado ao lado de minha coluna, foi um desfiar de lamúrias, a começar do título, “Um episódio melancólico”. Em resumo, ele achou que a direção do jornal havia instrumentalizado a crítica do ombudsman e concluía, sem muita convicção: “Não é o que me dizem o diretor, os editores e os meus melhores amigos na Folha. Acham que o ataque do ombudsman foi uma opinião pessoal do titular e não expressão institucional da Folha. Notam que o ombudsman tem o direito à liberdade total de opinião para que não precise se sentir coagido pela diretoria do jornal”.
Na minha coluna usei como título “O afeto que se encerra”, o mesmo de um livro de Francis. Aproveitei para relatar velha lenda sobre ele. Ao cobrir a viagem de um presidente americano, Francis foi abordado num saguão de hotel, em Londres, pelo jornalista Hermano Alves, então correspondente do Estado:
“Olá Herrrmano, você por aqui?”
“Sim, meu caro. Estou indo cobrir o briefing do secretário de Estado…”
“Não perrrca tempo, Herrrmano – soltou Francis. – Este sujeito não tem a menooorrr imporrrtância. Já mandei despacho dizendo que nada de imporrtante será discutido.”
Hermano distanciou-se alguns metros em direção à porta, fez meia volta e falou alto para registro dos jornalistas brasileiros ali perto:
“Francis, me faça um favor!”
“Pois não Herrrmano!”
“Enquanto eu vou lá, segura o planeta para ele não cair.”
Silêncio no hall. Hermano Alves foi cumprir sua obrigação. Os leitores de Francis saberiam no dia seguinte que o assunto não tinha a “menor importância”.
Escrevi: “O ocorrido ilustra o que eu disse sobre o articulista Paulo Francis na semana passada e prova que não falei nada de novo. Há tempos Francis é ridicularizado por colegas seus na imprensa”. Falei de sua imaginação enorme, não o suficiente para fazê-lo dar certo como escritor, mas o bastante para impedi-lo de fazer jornalismo, porque precisava inventar fatos para ajustá-los às opiniões imaginosas. Era cronista de gabinete. A leitura diária de jornais, revistas e livros alimentava sua produção. Se lhe tirassem os jornais por uma semana acabava o Paulo Francis. Falei de sua “tática” quando levado à lona por argumentos técnicos, a de revidar com ataques pessoais.
Francis havia feito a mesma coisa quando batido pelo diplomata e crítico literário José Guilherme Merquior (a quem acusou de “ordenhar” qualquer um que estivesse no poder); pelo músico Caetano Veloso (na discussão, de “alto nível”, foi Caetano quem o xingou de “bicha amarga” e “boneca travada” quando acusado de reverenciar e se submeter a Mick Jagger, dos Rolling Stones); pelo físico Rogério Cézar de Cerqueira Leite, pelo cineasta Arnaldo Jabor; pelo político Eduardo Suplicy (a quem Francis se referia como Mogadon Suplicy, ou seja, Sonífero Suplicy, que revidou na Justiça)… Certa vez apanhou de verdade. Levou uns sopapos de Adolfo Celli, marido de Tônia Carrero, agredida de forma infame numa crítica teatral – Francis escreveu que ela tivera fotos provocantes publicadas em revista pornográfica americana, insinuou que era corrupta e que ascendera na carreira usando o sexo. [Para algumas dessas polêmicas, ver Paulo Francis, de Daniel Piza, Relume Dumará, 2004, às págs. 69, 79 e seguintes.]
“A pusilanimidade do ataque na Ilustrada mostra algo mais do que insegurança e desequilíbrio mental” – escrevi. “Francis reagiu com ódio porque foi espetado no lugar certo. Ainda existia impressão de que ele pudesse fazer jornalismo. Não há mais. Não há uma única verdade no que escreveu sobre este ombudsman”.
Aproveitei para dar aos leitores uma pálida idéia do quão poderia ter sido baixo o meu ataque se eu entrasse no seu jogo: “A rigor, Francis devia agradecer-me. Não contei que tudo o que escrevi é exatamente o que seus amigos íntimos pensam a seu respeito, mas têm dó de dizer a ele. Não disse que imaginava sua cara gorda de barata descascada se retraindo a cada revelação minha. Não lembrei que, quando criança, apanhava no bumbum e respondia ‘cogito ergo sum’ – o que ele nega. Não inventei que ele é quadro a soldo do PRN, o partido de Fernando Collor. Não disse que, cutucado, faz beicinho e choraminga: ‘o carro do meu pai é mais bonito…’ Nem sugeri que quando toma purgante sua cabeça murcha”.
Faltou dizer ter sido Francis quem desenvolveu com rara maestria a técnica de fazer previsões diferentes uma pró, outra contra, outra mais ou menos – para depois dizer que acertou. Às vezes dava certo e seus leitores contumazes contavam quantas vezes ele vinha com o “conforme eu previ…” Às vezes não dava certo. Na penúltima semana de agosto de 1990 ele previu para “esta semana ação” de Bush no conflito contra o Iraque. Nada. Uma semana depois, no dia 28 de agosto, ele insinuava: “o desfecho está próximo e talvez até sem guerra”. Nada. A guerra começou bem depois, em 16 janeiro de 1991. Foi quando ele disse, na televisão, que ela seria curta e fulminante. Nada. Na segunda semana, também na televisão, garantiu que demoraria muito. Acabou um mês depois, em 27 de fevereiro. De fato, ele previra…
O caso Francis x ombudsman rendeu reportagem de oito páginas na revista Imprensa, “Lord Francis no caldeirão dos nativos”, de março de 1990. O subtítulo resumia tudo: “O maior polemista do Brasil enfrenta uma forte onda de críticas e, depois de anos no estilingue, descobre a dureza de ser vidraça”. Ele não queria “lustrar uma obscuridade” e acabou fazendo-o.
Não houve palestra da qual participei ou entrevista que dei naqueles tempos e tempos depois nas quais não me perguntassem sobre a “polêmica” com Francis. Sempre usei essa palavra entre aspas para me referir ao caso, porque não houve polêmica ali. Houve, isso sim, uma crítica técnica e uma definição de estilo, do meu lado, e uma montoeira de insultos do outro.
Francis ficou bastante tocado pelas críticas e passou a tomar um pouquinho mais de cuidado com o palavreado e com as informações na Folha. Não o suficiente para redimi-lo, porém o bastante para notar-se a mudança. Em 8 de março, na Ilustrada, ensaiava a auto-análise: “Sou, por exemplo, um comentarista. Não um repórter, embora às vezes tenha que me expor como repórter”. Ele estava chegando perto…
Um mês depois de contratado pelo Estado voltava a dar pequenos chutes, baseado em “cozinha” de texto alheio e interpretação distorcida da realidade. “Saddam prepara outra jogada”, dizia título de artigo seu publicado na página oito do Estado de 12 de janeiro de 1991. “Saddam Hussein vai anunciar que começará a sair do Kuwait em 15 de janeiro se houver uma conferência internacional de paz sobre o conflito palestino-israelense”. Francis, já disse, desenvolveu muito bem aquela “teoria” do jornalismo marrom americano que manda fazer uma previsão, qualquer previsão. Se der certo é a consagração. Se der errado, todos esquecem em pouco tempo. Pois exatamente na página ao lado da de seu artigo, no mesmo dia, os leitores atentos do Estado ficaram sabendo que a “previsão” partira de informação publicada no dia anterior pelo The New York Times, coisa que Francis sequer se dera ao trabalho de revelar e vendera como sua. Sorrateiramente, o editor do Estado fizera questão de publicar o texto do jornal americano ao lado do de Francis, sem nada dizer, sem nada explicar.
Sua ida para o Estado é o maior exemplo do desgaste. Achei ruim para ele, para a Folha e lamentei a perda do cronista. A transferência alimentou uma série de especulações, como a de que o affair com o ombudsman o tirara da Folha. Ele realmente confessara isso para amigos comuns, mesmo depois de ter declarado publicamente o contrário. Nunca entendeu a independência do defensor dos leitores. Ele mesmo, que conheceu de sobra a sua própria independência, em relação ao jornal.
Na coluna “A primeira morte de Paulo Francis” dei conta da transferência e até – contra o bom senso – fiz algumas previsões sobre seu futuro na nova casa. Seus leitores na Folha ficaram, de certa forma, indignados com a maneira pela qual o jornal noticiou sua saída, em nota de duas linhas e meia na quarta página do jornal, num sábado, 8 de dezembro de 1990. Ao receber mais cartas cobrando esclarecimentos, a direção do jornal deu mais informações em Nota da Redação incluída no Painel do Leitor. Francis rompera o contrato de trabalho, válido ainda por dois anos, a pedido dele mesmo, contrato renovado havia pouco tempo depois de proposta de outra publicação. Ou seja, ele recebeu uma oferta e a Folha cobriu-a. Ele recebeu uma contra-proposta e a Folha optou por não renegociar. “Desde o início do ano vinham crescendo as divergências de natureza editorial entre a Folha e o correspondente em Nova York”, finalizou a nota.
Francis trocou a Folha pelo Estado, depois de 14 anos no primeiro, para ganhar mais dinheiro. Conforme informou o Jornal do Brasil, ele mudou “convencido por uma estratégia que envolveu cinco dígitos de pura verdinha”. O contrato seria de US$ 200 mil por ano, ao todo, incluindo salários, benefícios extras, além da garantia de aposentadoria. Na época, realmente, um dos mais altos salários na imprensa escrita.
A Nota da Redação tocou em divergências de natureza editorial e isto causou alguma incompreensão. Não devia ser confundido com natureza política e nem linha editorial. A direção da Folha me deu mais detalhes sobre as divergências. O problema mais importante surgiu em momento dos mais delicados, quando o governo Collor disparou dois processos contra o jornal. Francis deu entrevista à Revista d’, suplemento dominical do próprio jornal, e sapecou nota oito para Collor e cinco para a Folha (nas realizações, apesar de dez nas intenções). Não proferiu uma palavra de solidariedade contra evidente perseguição política.
Outro episódio que contribuiu para azedar o relacionamento foi o dos ataques desfechados por Francis contra a atriz e empresária Ruth Escobar. Os termos foram interpretados pela direção do jornal como muito pesados. Aconteceu no primeiro semestre de 1990 e quase acabou em novo processo contra a Folha.
Somaram-se alguns problemas do ponto de vista funcional. Ele queria passagens aéreas fora de contrato; almoçou com o presidente Collor sem avisar a redação; veio ao Brasil sem comunicar a viagem… O relacionamento se deteriorou, o diretor de redação sequer falava mais com ele ao telefone. O jornal sentiu no correspondente “atitude de quem quer romper”. Ele negou isso à direção e considerou o fator financeiro fundamental.
No dia em que o JB noticiou sua saída, 5 de dezembro de 1990, ele desconversou quando questionado em telefonema (particular) de integrante da direção. Um dia antes, no entanto, Francis assinara e enviara carta de desligamento via entrega expressa. Não tivera coragem de falar do rompimento quando esteve pessoalmente no jornal, alguns dias antes.
Não entrei no mérito das divergências. Registrei ter a Folha perdido o seu segundo índice de leitura e isso tinha sua importância. Detectei a decadência do articulista embora continuasse o mais polêmico do jornal. Analisei sua ida para o Estado. O matutino investiu no cronista na expectativa de atrair leitura. Falei dos problemas que teriam com os palavrões que ele usava, por exemplo. Deixei de falar nos problemas políticos, quando Francis, sem o saber – porque se soubesse não o faria, ele era extremamente disciplinado, bastava ver sua atuação na Globo, muito comportada se comparada ao que escrevia no jornal –, se metesse a criticar alguém próximo ao jornal; um político, empresário, colaborador predileto etc. Disse que se ele obedecesse ao Manual do Estado, onde se recomenda a não publicação de “palavrões nem vulgaridades”, estaria perdido. Arrisquei: “Os problemas não param aí e nem é o caso de alongar-me nas outras diferenças possíveis no Estado, jornal desacostumado com o direito de resposta necessário em casos de agressões pessoais, ataques às minorias étnicas, racismo, distorções, preconceitos…”
Um leitor carioca tinha resumido a coisa dizendo que a Folha o mantinha pelas suas virtudes e o Estado o levava pelos seus defeitos.
Além do mais, os leitores típicos de Francis, acostumados pelos anos de convivência, “descontavam” os excessos e aproveitavam de cada crônica seus momentos de inteligência e riqueza de interpretação. O leitor do Estado – cuja média de idade era superior à do leitor da Folha, e cujo perfil é de classe média conservadora – teria a mesma paciência?
Terminei a coluna com observação que se mostrou realista a respeito do Estado. Bastaram os primeiros meses de atuação de Francis para o comprovar. Tratava-se de uma “perversidade” operada à revelia do jornal, mas com rara eficiência: a morte jornalística de seus articulistas. Conforme escrevi, eles estavam lá, eram lidos, mas não repercutiam. Ninguém comentava, parecia que ninguém via. Francis nunca mais foi discutido como era. Esse fenômeno acachapante aconteceu com antigos campeões de audiência – como Luís Fernando Veríssimo e Telmo Martino. Ambos “aconteciam” mais quando escreviam em outras publicações.
A perversidade com Francis acabou sendo maior. Manietado pela camisa de força do estilão do jornal, ele perdeu seu brilho de ficcionista e transformou-se, ó ironia, em jornalista. E o Francis jornalista, sério, cheio de dedos, poucos suportavam. Acabou-se o Francis que dera certo na Folha e nascera um outro – daí sua “primeira morte” anunciada por mim. Nem adiantavam os apelos que recebia da direção do Estado no sentido de “mandar brasa”, falar mal dos outros, achincalhar. Ele o tentou, com evidente mal estar, contra a intelectual Marilena Chauí, contra o chanceler Francisco Rezek, contra seu velho seu amigo, o filólogo Antônio Houaiss. Mas a maquiagem feita na sua coluna bem como a pouca repercussão do Estado, afogaram qualquer repercussão.
A frase final de minha coluna, soube depois, provocou irritação entre os oficiais do Estado: “Aquele Francis inflado pela Folha começou a murchar ao decidir se abrigar no redecorado mausoléu em que se transformou o Estado”. Pegou pesado o “redecorado mausoléu”. Reagiram então com aquelas notinhas, vistas no capítulo nono [do livro Ombudsman – O relógio de Pascal, Geração Editorial, 2006], dizendo que eu falava bem do Estado nas críticas internas e mal em público.
Nem só de mau humor vivia o Estado. Tanto que um de seus colunistas, Telmo Martino, se referiu à coluna da “primeira morte” sem perder a fleuma:
“Não se sabe qual é a receita da poção que Caio Túlio Costa toma ou a palavra mágica que ele berra antes de se transformar em ombudsman. Só se tem certeza de que o espinafre de Popeye e o shazam do Capitão Marvel eram mais eficientes. Além disso, os dois não dependiam da qualidade dos inimigos para dar prestígio a sua força. O ombudsman é do tipo que depende do professor Moriarty para ser Sherlock Holmes. Não é à toa que gastou todo o fôlego em suas últimas investidas contra o Francis, que se retirava. Sem inimigo luxuoso, o ombudsman ficará tão insignificante como seus alvos. Sua única salvação será uma transferência para o mausoléu. O problema é que mausoléu exige de seus ocupantes um estilo lapidar”. O título da nota de Telmo era sugestivo: “O salmão e a sardinha”.
Nada, por mais duro ou divertido que tenha sido, se compara com um telefonema de leitora de Recife, Pernambuco, que evitou me dar seu nome. Ela falava baixinho, devagar, parecia estar recostada, quando atendi. Ela começou assim:
“É o ombudsman mesmo?”
“Sim, ele mesmo” – respondi.
“Eu estou ligando… eu queria, pessoalmente, lhe dizer que o Paulo Francis é uma pessoa superior, acima de todos nós.”
“Pois não.”
“Que ele não pode ser comparado com ninguém.”
“Sim, senhora.”
“Que ele realmente paira sobre nós.”
“Certo.”
“O senhor só anota, né?”
“Perfeitamente, estou anotando…”
“Igual meu psicanalista.”
“Ah? Sim…”
“É, senhor ombudsman, saiba que enquanto o Francis paira no ar, o senhor pesa no chão” – ela acentuou as palavras que grifei.
“Para a senhora ver, e eu não sou o seu analista.”
“Sim, mas tá me fazendo um beeem…”
Agradecida, desligou e nunca mais chamou. Não havia o que discutir. É inegável o lugar, quase único, e a combativa participação de Paulo Francis no jornalismo brasileiro, mesmo enquanto cronista, para ficar nos termos da minha crítica enquanto ombudsman.
Ele morreu relativamente jovem, aos 66 anos. De fato, estava no auge da carreira – era cronista internacional da Rede Globo, colunista de página inteira no Estado, seus textos eram reproduzidos por vários jornais do país e, além de tudo, se transformara na mais atrevida atração do programa semanal da TV paga, Manhattan Conection, quando debatia sobre tudo e mais um pouco com os jornalistas Lucas Mendes, Nelson Motta e Caio Blinder.
Começou a sentir dores quatro dias antes e, numa terça-feira, 4 de fevereiro de 1997, morreu em seu apartamento em Nova York, perto da ONU, às 6h25 da manhã, vítima de enfarto. Está enterrado no cemitério São João Batista, no Botafogo, bairro da zona sul do Rio de Janeiro, ao lado de seus pais.
Conforme relataram os jornais, sua mulher, Sônia Nolasco, ouviu-o reclamar de dores por volta das 6h. Ele trabalhava no andar inferior do seu dúplex, disse que doía o ombro esquerdo e reclamou da respiração, difícil. Sônia chamou o serviço de emergência. Quando os paramédicos chegaram Francis ainda estava vivo, mas respirava com dificuldade. Tentaram reanimá-lo, sem sucesso.
Ele vinha sentindo dores no ombro esquerdo e acreditava tratar-se de bursite, a inflamação da bursa, uma pequena bolsa de líquido que envolve as articulações e funciona como amortecedor entre ossos, tendões e tecidos musculares. Ocorre principalmente nos ombros, cotovelos e joelhos.
Conforme o jornalista e amigo Lucas Mendes, ele reclamou da dor na sexta-feira pela manhã, antes da gravação do programa Manhattan Conection. No mesmo dia, tomou uma injeção contra a dor receitada por seu médico, Jesus Cheda. Na segunda-feira, trabalhou normalmente, gravou sua coluna diária para o Jornal da Globo, estava de bom-humor e falante, segundo registro da Folha. No fim do dia, voltou a reclamar do ombro, nada que o impedisse de jantar com a mulher em um restaurante chinês perto de onde morava.
Preparava um “romance histórico” sobre o período de Getúlio Vargas na história política do país. O livro receberia o nome de O Homem que Inventou o Brasil, conforme o seu editor declarou na época. Além disso, preparava o romance Cabeça, a terceira parte da trilogia Cabeça de Papel e Cabeça de Negro, inacabada.
O detalhe: vivia um momento de enorme preocupação. Encarava um processo difícil na justiça americana, a partir de uma ação interposta pela Petrobrás, então presidida por Joel Rennó, duramente e continuadamente atacada por ele, tanto no jornal quanto no Manhattan Conection, aonde chegou a afirmar que seus diretores tinham contas secretas na Suíça. Francis se viu, pela primeira vez na vida, seriamente atingido. A indenização solicitada estava na casa dos US$ 100 milhões, dinheiro que ele não tinha. Não apenas isso, só os custos dos advogados, provavelmente, o levariam à ruína. Ao menos, era o que ele achava e com isso se atormentava.
Fez diferença ter sido acionado em solo americano, onde gravara os tais comentários, exibidos apenas no Brasil. Nos EUA, a justiça anda rápida e é eficaz. Estava mal-acostumado a ser processado no Brasil e ver nada, ou quase nada, acontecer. Por conta disso, entrou em depressão profunda e, tudo indica, não resistiu ao enfarto.
• • •
Publicado originalmente em 1991, o livro Ombudsman – O Relógio de Pascal foi reeditado em 2006 pela Geração Editorial. Como os demais capítulos, o relativo a Paulo Francis foi atualizado e reescrito em 2006.