O prazer do texto

Conto sublime de Julio Cortázar desvela a alma do jazz

"Le Métro", 1942, de Vieira da Silva

"Le Métro", 1942, de Vieira da Silva

Não são muitos os textos na história da literatura que estimulam tanto o prazer da leitura como um conto de Julio Cortázar escrito no final dos anos 50, “O Perseguidor”, incluído na coletânea “As Armas Secretas” (José Olympio, 168 págs. R$ 12,70), relançado agora.

Traduzido em 1979, com delicadeza, por Sebastião Uchoa, quando publicado no único número da revista “Abre Alas”, o conto retorna em competente português de Eric Nepomuceno. Provoca o que o poeta José Paulo Paes considera cultura: não aquilo que entra pelos olhos mas o que modifica o olhar.

Para ler este texto, sugiro outra providência além da atenção trazida pelos olhos. Quem tiver a felicidade de ter na discoteca alguma versão da música Lover Man, executada por Charlie Parker, que coloque para rodar e sorva com o conto. (Existe aqui o álbum “The Verve Years” lançado nos anos 80 pela Polygram e a música, gravada em agosto de 1951 em Nova York, é a última faixa do lado 4).

Lover Man faz parte do conto, reintitulada Amorous, nome significativo na vida de Charlie Parker, mago do saxofone, um dos maiores nomes do jazz. O conto reinventa a própria vida de Parker e o acompanha num momento grave em Paris, quando música, tempo, droga, doença, arte e crítica se mesclam e se confundem na mesma improvisação que o jazz comporta, na mesma liberalidade que Parker erigiu como estilo.

No texto, Cortázar mostra o cotidiano de sofrimento e criação de Charlie Parker, chamado no conto de Johnny Carter. A narração flui ao ritmo dos compassos de Parker, artista que Cortázar amava e cuja morte, algum tempo antes do conto ser escrito, o tocou profundamente.

O tempo é fator central no conto, o tempo da criação, as suas diferentes medidas. No metrô, a curta distância entre uma estação e outra permitiu ao Johnny/Parker de Cortázar se lembrar de uma história que cabia em muitos mais minutos do que o pouquinho que dura a passagem entre duas estações. A metáfora do tempo e a da criação estão presentes sem interferir no prazer da leitura.

“Eu estou tocando isto amanhã”, dizia o músico para os companheiros, gente como Miles Davis, outro mestre do jazz. Cortázar registra a frase, obsessiva, constatação suficiente para levar Parker à letargia, ao fim e ao princípio da música. Constatação necessária para os momentos de criação posteriores. Charlie Parker tocou ontem a música de amanhã. Sempre. Daí sua inscrição na galeria dos gênios.

É possível extrair deste conto de Cortázar vários outros ensinamentos. Em 56 páginas ele discute também o quanto o momento da criação pode ser superior ao da crítica. Bruno, um crítico de música, é quem narra a história do Johnny/Parker. Chega a confessar que pensa com tristeza que o artista está no princípio do seu sax e o crítico tem de se conformar com o final. “Ele é a boca e eu a orelha, para não dizer que ele é a boca e eu o… Todo crítico, ai, é o triste final de algo que começou como sabor, como delícia de morder e mascar.”

Não importam quantas leituras sejam feitas, quantos significados se retirem. Independente disso, a simples leitura desse conto leva qualquer um a outras realidades, a outros tempos, a outras possibilidades de leitura de vida. Uma obra-prima, um Cortázar magistral está na praça. Com o retrato de um músico drogado, sofrido e atormentado, ele revela que o amanhã pode estar em outras medidas.

Ilustração: “Le Métro”, 1942, de Vieira da Silva

Publicado na Revista da Folha em 11/09/94, pág. 78.

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