Meu amigo e poeta Vinícius de Morais

Depoimento concedido após a morte de Vinícius de Morais (em  9 de julho de 1980) e publicado no Leia Livros de agosto de 1980.

Sérgio Buarque de Holanda fala de uma longa amizade. Depoimento a Caio Túlio Costa.

Conheci o Vinícius, mesmo, fora de qualquer ligação intelectual e literária; bom, ele já tinha publicado livros, eu não tinha publicado nenhum, embora fosse mais velho do que ele. Tenho o segundo livro dele, com uma dedicatória datada de 1935 e não era de um sujeito conhecido na hora não, era de uma pessoa que já conhecia antes. Pelo jeito da dedicatória se vê que não era novidade. De modo que pelo menos há 45 anos o conhecia. Eu ia muito ao Rio, durante algum tempo morei n o Rio; e ele vinha muito a São Paulo; no estrangeiro também nos encontramos várias vezes. Encontrei com ele na Itália, ele vinha em casa toda a noite tocar violão. Tenho a impressão que o Chico [Chico Buarque de Holanda, filho de Sérgio] daí que pegou a música, ele ia escutar o Vinícius, escondido, na hora em que devia estar dormindo. Tinha oito anos (o Chico foi para a Itália com oito e voltamos quando ele tinha dez anos), ficava muito aceso, o Vinícius pensava que ele ia dormir, mas ele vinha escondido e mais de uma vez eu vi o Chico escondido para ouvir as músicas do Vinícius.

Vinícius foi a única pessoa que batizou uma das filhas do Chico, a mais velha, Silvia; que nasceu quando ele estava mais ou menos exilado na Itália. Ele não podia voltar para cá, foi em 1969. Lá nasceu a Silvia, tenho até uma gravação feita pelo poeta Ungaretti, que foi à casa de saúde:

– Sergio, tu nipottina é bella!

Faz um bruta elogio. Foi o Vinícius quem me trouxe a gravação do Ungaretti, eles estavam juntos lá.

A poesia dele é uma coisa coloquial… Ainda outro dia ouvi o Carlos Drummond falando. A gente não pode recitar a poesia dele assim com um tom poético, tem que ser uma coisa quase coloquial. Mas ele não começou assim. Na Faculdade de Direito no Rio ele tinha uma turma de colegas que depois ficaram importantes e numa posição totalmente diferente da dele, eram o Santiago Dantas que depois foi integralista; o Américo Jacobina Lacombe, o Octavio de Faria (este fez um livro sobre um livro de poemas do Vinícius); o Helio Viana, todos do grupo chamado Caju. Mas ele logo se emancipou disto e foi para o lado oposto até. A partir daí ele entrou para o lado da boêmia. Começou a não ligar para a direita, era contrário, e conseguiu uma popularidade que raras pessoas hoje possuem. Ele tinha aquele jeito de tratar todo mundo com um certo charme pessoal.

Eu me lembro quando morávamos na Itália, tinha um amigo nosso que era cônsul geral em Roma, a mãe dele estava lá. Então ele deu uma reunião para vários cineastas. Tinha muitos, inclusive estudantes de cinema como o Rudhá [de Andrade], filho do Oswald de Andrade. Convidaram o grupo para ir lá à noite, não tinham convidado para jantar porque a mesa era pequena para todo esse pessoal, a mãe do anfitrião pediu que todos viessem cedo. Já passava das nove horas quando o Vinícius chegou, atrasado, e quebrou o gelo.

– Mas que homem … – ela dizia, esquecida do atraso. Ele agradava às pes­soas, mas não agradava de propósito, era a maneira dele, naturalmente assim.

Depois ele passou para a música, aí foi demitido do Itamaraty, no tempo do Cos­ta e Silva; pediram que ele não fizesse mais shows, ou então largasse o Itama­raty.

– Então eu largo! – ele disse. Não, não foi cassado, foi uma coisa individual: não poder tocar a música que ele gostava.

O Vinícius passou dois meses em Ro­ma, antes de assumir em Paris e ia todo o dia em casa, eu era professor, dei curso na universidade. Ele ficou num hotel da Via Vittorio Veneto onde se reuniam os ato­res, eu conto neste prefácio [ver Operário em construção e  outros poema, Nova Fronteira, 1980] que cheguei um dia lá e o encontrei ao lado de Irene Papas (aquela do filme Z).

Numa dessas ocasiões apareceu um camarada mineiro, filósofo, que morreu agora. Era um sujeito muito diferente de Vinícius, muito sério. Ele e o Vinícius não davam certo. Não sei por quê, o Vinícius tinha uma facilidade de se dar bem com as pessoas. Eu disse ao camarada: não o convido hoje porque já tenho compromisso; era o Vinícius. Vamos deixar para amanhã.

– Não, amanhã eu vou jantar com o Cristiano Machado, embaixador no Vaticano, pode ser para depois de amanhã? – foi a resposta. Eu disse que em princípio podia ser.

Aí chegou o Vinícius e eu disse a ele que o camarada estava com vontade de vir, mas achei que os dois não combinavam bem, tão diferentes que eram, o outro era um sujeito brigão, tinha sido até boxeur. O Vinícius disse que eu tinha razão:

– Não vou com aquele sujeito não.

Ê raro ele ficar assim com outras pessoas. No dia seguinte o Vinícius apareceu e o lembrei que o camarada viria no outro dia. Disse o Vinícius:

– Se você quiser venha.

– Mas eu estou avisando: ele disse que vem amanhã.

No dia seguinte aparece o Vinícius. Aí eu disse:

– Ah! Você veio, né? Tá bem.

O outro chegou tarde, às nove horas e jantamos juntos. Ele falando o tempo todo, metendo o pau na moça que trabalhava num escritório comercial em Paris onde ele teve que fazer qualquer coisa. E o Vinícius num silêncio mortal. Depois que ele saiu perguntei a  razão daquele silên­cio:

– Eu estava aqui, só não dei nele por­que ele estava na sua casa.

– Mas por quê? – eu perguntei.

– Porque ele estava falando mal de uma mulher.

– Mas você conhece a mulher?

– Não, eu não conheço, mas falar mal de mulher é coisa que eu não suporto!

Ele não admitia que ninguém falasse mal de mulher, fosse quem fosse. De mo­do que ele era assim um pouco deste jeito. Estávamos certa ocasião na casa de um dos grandes amigos dele aqui em São Pau­lo, o Zequinha Marques da Costa. Certa hora ele se levantou e foi lá para dentro. Neste momento o Zequinha me convidou para ver alguns quadros que tinha lá. Entramos, vi um quarto.

– Ali deve estar dormindo o Vinícius – disse o Zequinha – evitemos falar alto quando passarmos por lá.

Passamos então pelo quarto enorme uma cama de casal e o Vinícius no meio dormindo. Eu disse:

– Olha aqui vamos fechar esta luz.

E o Zequinha respondeu:

– Não, não, não, o Vinícius não quer. Ele quer a luz acesa porque assim fica com a impressão de que tem gente.

Ele morreu assim, com quantidade de gente em volta. Dizem que só no apartamento dele  foram mais de mil pessoas sem estar avisadas. Havia toda aquela gente chorando, amigos…

Mas os médicos achavam que ele não ia durar muito não. Tinha diabetes, inclusive; não parava de beber. Quando fiz esta coletânea (Operário em construção e outros poemas) fui ao Rio, estava no hotel, o Vinícius foi lá para ver. Aí eu pedi um whisky e disse:

– Eu não peço para você porque você não pode tomar.

– Whisky não – respondeu – mas eu tomo vinho branco.

– Mas não faz mal?

– Não, o médico disse que não.

Sabe, enquanto nós estivemos lá (a última mulher dele, Gilda de Queiróz Matoso, também estava lá) ele tomou cinco garrafas de vinho branco. Bom, eu tomei um bocadinho, mas o grosso foi ele quem tomou.

Quanto aos poemas eu gosto de muita coisa dele. Quando comecei.a fazer esta antologia ele queria tirar as poesias que têm música. Mas depois ele mesmo achou uma como este “Samba em Prelúdio”. Às vezes eu gosto de uns poemas dele, às vezes eu gosto de outros. Gosto muito do “Soneto da Fidelidade”, onde ele fala do amor, que “não seja imortal posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure”. Ele costumava dizer de brinca­deira que mulher pra ele dura três anos. Depois tem que mudar…

Este livro da Nova Fronteira, foi ele quem pediu que eu fizesse uma antologia, uma introdução critica. Agora não estou fazendo crítica literária, então resolvi fa­zer uma coisa sobre ele, a pessoa dele. Destas poesias faltam algumas que numa certa hora se perderam em parte. Eu não sabia nem como construir e pedi que o Vinícius completasse, não inclui exata­mente o “Soneto da Fidelidade”. Fiz a seleção e este estava em outra lista, que se perdeu. Escolhi de diversos lugares, tem um soneto dedicado ao Neruda, foi o Vi­nícius quem me deu para sair aí, mas este não é um soneto novo, é antigo. Ele fez para, o Neruda depois que ele chegou aqui. Ele tinha perdido o soneto, de modo que não incluiu nos outros livros dele; é uma resposta ao Pablo Neruda.

Foi ele quem escolheu o título do livro. Eu ia fazer uma escolha, Antologia, qual­quer coisa assim. Por ocasião da greve em São Bernardo em 1979 ele foi lá e recitou isto para os operários. A letra tem algumas coisas sutis como a história da tentação de Cristo pelo diabo, mas o Lula pelo menos gostou muito.

No começo de sua carreira Vinícius jamais se indispôs com o grupo Caju embora fizesse grande amizade com gente do outro lado: grandes amigos como o Ru­bem Braga, o Fernando Sabino, o Paulo Mendes Campos e o Otto Lara Resende ou os mais velhos como Drummond ou Manuel Bandeira. A poesia dele começou com a influência deste grupo, o Caju espiritualista, não chegava a ser fascista não, alguns foram integralistas, mas ele nunca foi isto não, foi até o contrário. Marcou-o também profundamente a experiência em Oxford. Ele mesmo con­fessava a marca que lhe deixou a poesia inglesa, moderna e antiga, mais talvez que a poesia de qualquer outro país.

Os primeiros dois livros têm este lado individualista e meio espiritual, Caminho para a Distância e Forma e Exegese. Ele era muito moço ainda. Depois tem Aria­na, a Mulher, aí ele já estava mudando, foi tomando este tom mais lírico, mais amoroso, mais material talvez. Os pri­meiros livros são desta fase espiritualista, depois ele descobriu que não era aquilo não, que gostava era de mulher. No meio dos primeiros tem muita coisa bonita, mas eram muito diferentes dele. Esta poe­.sia lírica junto com o Drummond e o Bandeira formou uma espécie de trindade na poesia brasileira. O Murilo Mendes também tem um pouco. Uma tendência assim um pouco coloquial.

O traço social, acho que em o “Operá­rio em Construção” é visível. Acho que ele estava caminhando para este lado, mas tinha muito o lado lírico, mulher no meio. Tinha as duas formas, só as duas?”

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