Existem interrogações metafísicas no desenho de Paul Klee que ilustra esta página. De onde? Onde? Para onde? As questões não se esgotam na dúvida da identidade. A última delas até suspira por um futuro incerto, calibrado pela cabeça curva do personagem, pelo olhar para baixo. Será um anjo como outros de Klee? Outro a olhar para aquilo que os homens chamam de progresso e se traduz num amontoado de detritos no chão? Desafortunadamente, o preço do progresso requer doses incomensuráveis de detritos. Mais um paradoxo da dita civilização.
Este blábláblá metafísico vem a propósito das responsabilidades de pessoas que hoje têm mais ou menos a minha idade, ou seja, estão entre os 35 e 45 anos (eu chego aos 40 agora) e não se dão conta do quanto se desobrigaram do papel de cobradores permanentes dos deveres do Estado, da sua cidadania.
Tentarei ser claro. Esta turma que está no vigor de sua produção pouco, ou nada, fez para honrar a herança de cidadania deixada pelos avós e pais no que toca aos serviços prestados pelo Estado.
Eles, nossos avós e nossos pais, nos deram uma boa escola pública. Quando ela degringolou nas mãos de governos por nós eleitos, fomos atrás das escolas particulares e lá matriculamos nossos filhos, pagando mais para dar-lhes uma educação “á altura”.
Eles nos deram ruas calmas, sem violência, sem assaltos. Podíamos brincar “lá fora”, passear e fazer compras com sossego. Quando a criminalidade explodiu, nós contratamos os porteiros e seguranças dos prédios, instalamos circuitos internos de televisão, nos refugiamos em condomínios fechados, ajudamos a emplacar shopping centers fechados e seguros, fugimos das ruas com as janelas fechadas dos carros.
Eles nos deram hospitais públicos que funcionavam com decência e eram limpos. Quando as filas cresceram e o atendimento destemperou, nós fomos atrás dos planos mirabolantes de saúde, engordamos a indústria das clínicas, resolvemos tudo particularmente.
Eles nos deram trens, ônibus, transporte público funcional. Quando os ônibus e os trens se encheram de gente, transbordantes, quando as poucas linhas de metrô passaram a não dar conta, compramos o primeiro carro, o segundo, arrumamos táxi ou motoristas só para levar crianças à escola…
A cada deterioração do serviço público, nós, a classe média – não importa se “média média”, “alta” ou “baixa” –, íamos resolvendo de modo privado cada problema, criando mundos à parte, desobrigando-nos de cobrar dos governos, do Estado, aquilo pelo qual continuamos pagando sem receber em contrapartida.
A responsabilidade pela podridão dos serviços básicos dos Estado, numa análise mais profunda, não está somente nas mãos de políticos corruptos nem dos incompetentes gestores do dinheiro público. Está também na nossa incapacidade de saber cobrar do Estado o básico. Porque nós simplesmente pagamos impostos para isto.
Esta responsabilidade é nossa porque com o pouquinho de dinheiro a mais que temos, nós, a classe média, tentamos solucionar particularmente aquilo que é dever do Estado. A grande maioria das gentes, a maioria da “vida real” que também acorda cedo, essa grande maioria não tem jeito de se sobrepor ao Estado, sofre quieta os infortúnios de uma vida desassistida no mais baixo dever do Estado. De onde viemos, nós o sabemos. Onde estamos também. Para onde vamos não se sabe. De cabeça erguida? Nada indica que sim.
Ilustração: “De Onde? Onde? Para Onde?”, Paul Klee (1879-1940)
Publicado na Revista da Folha em 12/06/94, pág. 54.