PUBLICADO EM VEJA, 15/04/1981, PÁG. 97.
Terra de Santa Cruz,de Adélia Prado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
Seduzida por Deus: Adélia Prado jamais escondeu esta paixão. Faz dela uma bandeira, uma prece. Os pequenos detalhes, as coisas do amor ou da alma. Tudo leva sua marca erotizada de céu, de santa desbocada e virginal.
Crente, canta as delícias de pecados pagãos. Uma vez filha de antiga lei, Deus não lhe dá sossego, é seu estímulo, sofrimento, seu ferrão, Quer cair na vida, servir a Deus, seu marido, desejar o padre ou saber se podemos gemer sern culpa. Mas nos enterros chora com um olho só. Aos que se admiram de ver uma dona-de-casa do interior de Minas Gerais .escrevendo poemas eróticos, ela responde com calma simplicidade: “Deus é que manda. Então eu faço”.
Terra de Santa Cruz é o quinto livro desta que considera 40 anos demais para uma mulher e prefere 42. A velhice é preocupação constante, na vida e poesia, “Não é bem ficar velha que me importa, é ficar feia. Se eu ficasse uma velha bonita não me importaria. Mas eu mentiria se dissesse que não dói ver o corpo se modificar, a flor murchar. Que dói, dói” Adélia Prado estourou em 1976 a reboque da ilustre apadrinhagem de Carlos Drummond de Andrade, Ano após ano, seus novos e boquiabertos leitores ganharam dela quatro livros novos e a dois deles apelidaram de prosa: Bagagem e Cacos para um Vitral. Não era o caso. Em todos, o mesmo universo pontilhado de miudezas tecidas por um raro e indiscutível talento de sabor religioso. Os poemas aparecem e desaparecem no fluír das prosaicas tarefas cotidianas. Uma frase, uma palavra, podem surgir no meio de uma receita de bolo. Ou no meio da noite. “Mas sempre largo tudo e vou correndo escrever a idéia”. diz.
Retirando poesia de material considerado pobre – bestial, já foi dito -, a estreante cintilou em fé e com ela comungaram católicos, protestantes, ortodoxos e até ateus embriagados por seu jeito direto e ambíguo, profundo sem ser denso, alegre e angustiante. A esta esperançosa Terra Santa Cruz cabem três divisões distintas: o “Território” vem na senda de Guimarães Rosa, que o abre em epígrafe, pois são “os tristes e alegres sofrimentos da gente”; na “Catequese”, a doçura momentânea do pecado, amargo em sua digestão; e, na ”Sagração’, as vibrações da carne que entoam hinos: “E me chamou de vaca, como se dissesse flor, santa, prostituta feliz”.
Não se pode ficar indiferente a essa cristã: ela não teme o pecado.