Desnorteados?

Publicado em O Globo de 16/1/2005

A abertura de arquivos está na ordem do dia, mesmo a contragosto dos mais fervorosos cumpridores de ordens do dia. Ao largo dessa discussão trabalha-se pela recuperação de outro tipo de arquivo, aquele que não ficou escondido nem por razões de Estado nem por birra de militares, arquivos capazes de compor a memória do movimento estudantil brasileiro.

Projeto encabeçado pela União Nacional dos Estudantes (UNE) e pela Fundação Roberto Marinho (quem apostaria que estas instituições acabariam dando as mãos, hein?) pretende recolher toda a documentação esquecida, escondida ou bem guardada – fruto da militância e vivência naquela idade em que tudo é possível.

Um forte apelo de mídia solicita a todos os detentores de documentos relativos ao movimento estudantil – fotos, panfletos, faixas, cartas, bilhetes, relatórios, relatos de assembléias, bonés, camisetas – que os enviem ao Museu da República, no Rio, para depois formarem o acervo permanente na UNE. Em paralelo, continua mofando nos arquivos federais a documentação das estripulias estudantis que escapou à destruição covarde dos arapongas e dos militares.

A rigor, já se encontra aberta parte da documentação oficial, a dos arquivos da polícia política paulista e da carioca. As autoridades estaduais não tiveram os pruridos das autoridades federais. Nada mais tranqüilo, portanto, do que liberar todos os arquivos federais. Todos.

Esse projeto de memória do movimento estudantil fez mais. Primeiro, procurou os líderes históricos e colheu seus depoimentos. Segundo, reuniu historiadores, sociólogos e ex-militantes em workshop no Rio de Janeiro e depois num seminário no Tuca, o histórico teatro da PUC de São Paulo, palco de grandes manifestações e de pancadarias como no congresso de reconstrução da UNE, em 1977, quando foi invadido pela polícia.

Pancadaria não é o que falta nessa história. Organizados sob a bandeira da UNE (nascida em agosto de 1937), os estudantes brasileiros têm tido participações legítimas na construção da democracia. Apanharam, mas realizaram.

E qual seria a relevância do movimento estudantil? É um movimento social ou apenas um mito que acabou “sacralizado”? Tem história própria? Para a professora Maria Aparecida de Aquino, que esteve à frente da indexação dos arquivos do DOPS, essa história pode ser dividida em três fases:

Primeiro a fase Nacionalista, do início do século XX até 1968. Basta lembrar a força estudantil no mote “O petróleo é nosso”, de 1947, no apoio à posse de João Goulart ou então nos enfrentamentos contra a ditadura militar cujo auge se deu em 1968 com a passeata dos Cem Mil – e parece que não havia cem mil em passeata…

A segunda vai de 1968 a 1974, considerada por Aquino a fase Revolucionária, quando a aspiração dos líderes é a de criar um governo socialista. Muitos estudantes – os que não estavam no exílio nem tinham sido assassinados pela ditadura – participaram da guerrilha urbana ou rural. Período brutal finalizado com a anistia – campanha também impulsionada pelos estudantes.

A terceira parte começou em 1974 e pode ser demarcada até a campanha pelas eleições diretas, em 1984, ou até a derrubada do governo Collor, em 1991. É a fase Democratizante. Voto direto para presidente. Caras-pintadas.

E de lá para cá? Desnorteados? Ou seja, sem norte?

Uma UNE que volta a falar em Projeto Rondon (joinha dos militares durante a ditadura, o programa remetia universitários para ajudar em áreas carentes – movimento vigorosamente boicotado pelos líderes estudantis da época) e engole essa denominação carimbada pelo regime de exceção, mesmo que seja um projeto “irado”, tem norte?

Mais: no que este material histórico e analítico pode ajudar o estudantado de agora? Quais seriam as perspectivas para a pequenina juventude engajada, que vive uma realidade multifacetada, polifônica, poliárquica, dominada pela assimetria na informação e, ainda por cima (e por sorte), sem um inimigo claro e comum?

Com os estudantes, a palavra, ou melhor, a ação.

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