Desconfie, sim senhor

Ninguém deve confiar nos políticos, é o senso comum. Porque política, dizia Ulysses Guimarães, seria a arte do possível, não a do que se deseja fazer.

Também integra o senso comum a idéia de que os políticos das democracias desenvolvidas seriam mais confiáveis do que os nossos, demagogos do Terceiro Mundo.

Pois bem, as revelações do médico do finado presidente francês François Mitterrand mostram o quão sábio é este conceito trivial: nunca acredite em políticos, não importa de onde sejam.

Mitterrand foi um monumento. E isto não é nenhuma ironia com o fato de ele ter erigido grandes monumentos, como a pirâmide de vidro no Museu do Louvre. Ele foi o mais importante político socialista já eleito e reeleito pelo voto popular. Inaugurou a coabitação sadia de um presidente socialista com um ministério conservador. Colocou-se como o contraponto à arrogante França gaullista cujos vestígios todos viram nos testes nucleares retomados por Jacques Chirac.

Em suma, Mitterrand foi o homem mais respeitado em toda a França nos últimos quatorze anos.

Sua credibilidade era tanta que, mesmo quando mentia, o seu tom e o seu olhar eram de sustentação da verdade. Eu o vi enfrentando o concorrente Jacques Chirac num debate na televisão, garantindo não ter feito algo que realmente fez.

No caso agora revelado, uma de suas promessas quando candidato era a de que, caso fosse eleito, propiciaria aos franceses um boletim bianual sobre a saúde do presidente. Os boletins realmente vieram e, como se sabe após a divulgação do livro do doutor Claude Gubler, eram mentirosos.

No primeiro ano de seu governo, em 1981, Mitterrand já sofria de câncer na próstata, depois espalhado para os ossos. O fato de Gubler ter ido adiante nas suas revelações e dito que, no final do mandato, Mitterrand não tinha mais condições de governar não é relevante para o fato principal: a má saúde do presidente foi considerada “segredo de Estado”. Isto não impediu que o próprio se reelegesse para um segundo mandato de sete anos, em 1988.

O livro de Gubler, “O Grande Segredo”, apreendido por ordem da Justiça francesa após queixa da família de Mitterrand, procura mostrar que o fato de o presidente ter sobrevivido tanto tempo é um milagre da medicina. Ele recebia hormônios e, quando não fizeram mais efeito, trataram-no com quimioterapia. No final, o médico acabou afastado do tratamento e a publicação do livro teria sido a sua vingança. O médico negou a vingança e declarou ser vítima de uma armadilha de Mitterrand quando aceitou esconder a doença presidencial sob a argumentação do “segredo de Estado”.

Pelo sim, pelo não, saibam os mortais comuns que, sob este conceito e dependendo das necessidades, o que for considerado segredo de Estado deve permanecer como tal e quem paga os impostos vai ficar sem saber dele – a menos que algum investigativo órgão de comunicação o descubra e o torne público.

O povo francês acreditou durante quase 14 anos ter um presidente sadio, apoiado nos boletins médicos, algo que coloca em questão também a idoneidade do profissional da medicina – mesmo quando se tenta compreender as baboseiras que deve ter ouvido sobre as “razões de Estado”.

Por essas e outras, lá vai: nunca acredite em políticos, de nenhum lugar neste mundo.

Ilustração: Edouard Manet, O Tocador de Pífano, 1866.

Publicado na Revista da Folha em 11/02/96, pág.30.

Compartilhar