Belo brasileiro

Da Vinci morreu, Hegel morreu, Cézanne morreu. E o Belo mesmo não se sente muito bem.

Discussão do Belo. Nada mais oportuno porque, no Brasil, o seu contrário transformou-o em desejo inatingível. Assim, na definição do Belo, quem sabe uma iluminação qualquer ajude a desmantelar o feio.

O Belo é o tema dos Dálogos Impertinentes*, conversa que precisa ser boa e bonita porque o Belo se discute desde sempre.

Os gregos o procuravam não nos objetos que o pudessem refletir, mas na sua união íntima com o Absoluto. Depois, a natureza passou a representar o Belo. Ele não poderia estar na abstração do intelecto, mas sim no harmonioso mundo vivo. Leonardo da Vinci explicou a necessidade de a arte, ao imitar a natureza, ser capaz, ela mesma, de reproduzir o movimento da criação natural. O filósofo alemão Hegel, suporte da filosofia e estética modernas, criticou a imitação e inverteu tudo, contrapondo o Belo artístico, mais elevado, à beleza da natureza. Porque o Belo nasce duas vezes no espírito, “primeiro como representação mental, segundo como representação artística da imagem física”. Outro filósofo, Kant, montou o conceito de prazer estético. O Belo é aquilo de que se gosta, universalmente, sem precisar de conceitos.

Cresceram os poetas, os artistas e as definições. Veio a busca do “sentido” e a desconstrução do mesmo sentido criando “tensões” que, nos últimos tempos, chacoalharam com as noções do Belo.

É aquilo: Da Vinci morreu, Hegel morreu, Cézanne morreu. E o Belo mesmo não se sente muito bem.

Na arte, para ficar num exemplo caro aos amantes da beleza, isto é visível em São Paulo quando se passa pelo túnel sob o Ibirapuera. Obrigatoriamente vê-se algo por ali que é considerado uma escultura. A coisa é parecida com o carro do finado Ayrton Senna, mas na verdade não passa de um monstrengo acintoso.

Passou longe dali a preocupação dos professores de uma escola de primeiro grau existente no Canadá, em Québec, a Le Triolet, onde um dos seis principais valores cantados pelos professores é o “gosto pelo Belo”. Alguém já viu algo parecido na educação brasileira onde o feio está nela mesma, na malversação de recursos a impedir, inclusive, o pagamento digno do professor?

Tem um personagem de Gustave Flaubert no romance “A Educação Sentimental”, o artista Pellerin, que lia toda as obras de estética para descobrir a verdadeira teoria do Belo. Quando a encontrasse, ele estava certo, poderia produzir obras-primas. Catava desenhos, modelos, gravuras, reclamava do tempo, dos seus nervos, de seu ateliê, saía à rua buscando inspiração, abandonava a obra na qual trabalhava e sonhava com outra mais bela. Atormentava-se atrás de uma teoria que lhe desse a chave da beleza.

No caso brasileiro não há mais busca teórica possível. Nem Pellerin poderia existir. Porque conseguiu-se destruir até a noção mais antiquada do Belo, a de que ele estaria na natureza. Nem a esta fase primitiva o país chegou. Exemplo? Entre em São Paulo pela avenida marginal do rio Tietê. Olhe para aquela paisagem “natural”, para as bordas e para o leito pegajoso do rio. Basta olhar.

Ou, então, para ficar na beleza do ser humano, olhe para a figura esmaecida de um menino de rua esmolando num farol. Não há conceito de Belo que resista.

* Os Diálogos Impertinentes sobre o Belo aconteceram na terça-feira, dia 28 de maio de 1996, no auditório do Sesc-Pompéia, com transmissão ao vivo pela redes NET e Multicanal. Promoção da Folha, PUC e Sesc.

Ilustração: Uma moderna Olímpia, Paul Cézanne, 1872/74

Publicado na Revista da Folha em 19/05/96, pág. 34.

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