A única vitória defensável do século 20 foi a da tecnologia
Não existe música depois de Mozart. Assim como não existe romance depois de James Joyce, arte depois de Cézanne, cinema depois de Eisenstein, poesia depois de Eliot e teatro depois de Racine. Tudo o que veio depois é arremedo, imitação, banalização, maneirismos; maneiras de fazer o mesmo de forma diferente. Os últimos grandes momentos da criação se evaporaram nos primórdios do século 20. Os derradeiros criadores estavam na invenção do cinema, na poesia com “A Terra Desolada” (Eliot) e no romance com “Ulysses” (Joyce). Sim, estavam no alvorecer deste século 20 que vai-se acabando em gemidos, infecundado, escravo da tecnologia e do mercado.
Ouça uma obra qualquer de Mozart e depois escute, nesta ordem: Beethoven, Shoenberg, Stravinsky. Na sequência, tente ouvir qualquer cacareco moderno, de John Cage a Oasis – passando pela bossa nova, The Beatles, Laurie Anderson, o que você quiser. Se em Mozart se sente o sopro da criação, em Beethoven se ouve música, sim, grandiosa, mas realizada como que por um matemático, tamanha a precisão dos compassos. Se em Beethoven existia um matemático, em Shoenberg se encontra um analista de sistemas e, em Stravinsky, um programador de sistemas. No resto, porque é resto, virá a aritimética, a repetição monocórdia, a redundância de um pedacinho de música qualquer (mais “hard” ou mais suave, com ou sem melodia), do que já existia, atonal ou não, em Mozart, instante sublime da criação musical.
Nas profundezas do abismo dessa decadência o mundo se arrasta para enterrar um século cuja única vitória defensável é a da tecnologia. E, mesmo assim, defensável em termos. Porque os gregos viviam melhor do que nós sem nenhuma tecnologia. Escravizavam os inimigos batidos em batalha? Sim. Mas o que o mundo tem de menos pior, em se falando de escravidão, quando se vêem áfricas, bósnias e brasis?
“Arrá! Você está esnobando romancistas como Thomas Mann e Normam Mailer! E Guimarães Rosa?”, perguntará você que já leu três vezes “A Montanha Mágica” e, mesmo sem ter ido até o fim, adora “O Grande Sertão: Veredas” e não esquece um livro como “A Canção do Carrasco”.
Pergunto eu: o que há de diferente em termos de forma, na maneira de escrever, em Thomas Mann ou em Norman Mailer que não havia em Dostoievski? Qual diferença há entre Rosa e Joyce? A língua, talvez. Mas não a inovação linguística. O que existe no cinema de Hollywood, incluindo a orgia de efeitos especiais, que não tenha existido em Murnau ou em Eisenstein? O que existe em teatro, agora, que não havia em Shakespeare ou Racine?
Nas artes plásticas, quando Velásquez pintou “As Meninas” ele retratou a si mesmo no quadro. Pela primeira vez a arte colocava-se a si própria numa tela. No mundo do pensamento, ao mesmo tempo, Descartes escrevia o cogito, o “penso, logo existo”. Assim como na arte se deixava de lado os reis e as figuras religiosas, prato único dos artistas até então, na filosofia também se abandonava a determinação religiosa e o homem passava a encarar o próprio pensamento. Quando, trezentos anos depois, Cézanne deixou à mostra, no seus quadros, a espessura da tinta, tornou visível o traço do pincel, ele já estava virando do avesso a própria noção de suporte na obra de arte. A pincelada passou a ser vista como mais um elemento de tensão entre a imaginação criadora e a tela da pintura. Nenhuma instalação moderna vai além disso, por hermética que seja.
Basta! O século 20, na expressão do poeta, está por um fio. Vai-se acabar num suspiro.
Ilustração: Joseph Beuys, “A Mulher Mostra ao Homem Sua Obra de Arquitetura Ator e Atriz”, 1960.
Publicado na Revista da Folha em 02/06/96, pág. 18.