A consciência de Svevo

Resenha do livro A Consciência de Zeno, de Italo Svevo, publicada originalmente no Leia Livros em setembro de 1980.

Resignado com o silêncio da critica em torno de si, Italo Svevo ficou vinte e cinco anos sem escrever, acatando o que consi­derava o juízo unânime com relação às suas obras. Diria também que não existe uma unanimidade mais perfeita do que a do silêncio. Mas hoje teria motivos de so­bra para estar feliz. Nunca poderia ter imaginado o alcance de sua projeção de­pois que – e seu amigo James Joyce cola­borou para isto –  a critica e o público, francês e italiano, descobriram A Cons­ciência de Zeno, Una Vita, Senilitá, La Novella del Buon Vecchio e della Bella Fanciulla…

Os alemães, os ingleses, os americanos, os japoneses –  e não necessariamente nesta ordem –  descobriram-no também. Aqui, desde 1957 Lauro EscoreI reclamava nas páginas do “Suplemento Lite­rário” de O Estado a tradução de Svevo. Ela veio um ano depois através de uma edição portuguesa, inexata. Os traduto­res “arrumaram” Svevo, relativizaram algumas afirmações, bordaram seu italiano duro e mal escrito, porém só dele e marca inconfundível. E ele permaneceu escon­dido até agora quando Ivo Barroso nos traz uma tradução impecável e precisa da sua obra-prima, A Consciência de Zeno.

Italo Svevo é pseudônimo do comerciante Ettore Schmitz. Nasceu em 1861 na bela e cosmopolita Trieste, pertencente durante 500 anos ao império austro-húngaro e desde 1918 italiana, entreposto comercial ao norte da Itália, quase fron­teira com a então Iugoslávia, às margens das águas azuis do Adriático e aos pés do Carso Triestino. Quinto dos oito filhos sobreviventes do comerciante Francesco Schmitz e de Allegra Moravia, passou parte da infância estudando na Alemanha preparando-se para a carreira comercial (sonho do pai) e lendo clássicos ale­mães, ingleses e russos.

Uma das fontes mais apropriadas e precisas para conhecê-lo melhor é o Perfil Autobiográfico que sua mulher, Li­via Veneziani, incluiu no pungente Vita di Mio Marito. Ali ele diz que aos 17 anos voltou a Trieste e freqüentou duran­te dois anos o Instituto Superior de Co­mércio, o que serviu somente para mos­trar que não tinha nascido para aquilo. Os negócios do pai andavam mal. Empre­gou-se então como encarregado da corres­pondência na sede triestina do Banco União de Viena. Essa vidinha de bancá­rio, rotineira e mal paga, vem descrita cuidadosamente em uma parte de seu primeiro romance, Una Vita.

Mas Svevo tinha pretensões outras do que uma bela carreira bancária, queria conquistar a literatura italiana. Leu tudo que caiu-lhe nas mãos: Maquiavel, Guic­ciardini, Boccaccio, Francesco De Sanc­tis, Carducci. Leu também Flaubert, Daudet, Zola, Balzac, Stendhal, Re­nan… Admirava profundamente Schopenhauer. Inspirado pelas idéias do filósofo alemão, depôs a respeito de Uma Vita:

“Alfonso, o protagonista do romance, devia ser a personificação da afirmação shopenhauriana da vida tanto vizinha à sua negação. Disso talvez a conclusão do romance, seca e rude como uma parte de um silogismo.”

Junto à atividade bancária começou a trabalhar como crítico literário na imprensa triestina. Conheceu nesta época o pintor Umberto Vereda a quem se uniu numa grande amizade. Em 1892 saiu pelo editor Vram o romance Uma Vita, que trouxe pela primeira vez o seu pseudônimo impresso na capa. Ali a critica veria depois, no personagem Alfonso, o irmão carnal dos protagonistas dos outros dois romances de Svevo. Em 1898 publicou ­pelo mesmo editor o segundo romance, Senilitá. Ele o resume dizendo ser a “história da aventura amorosa que o trintão (se diz assim?) Emilio Brentani se concede”. Em 1898 o sucesso de Senilitá foi, numa perspectiva otimista, exatamente nulo. Mas 25 anos depois Eugenio Montale o considerou um romance quase perfeito “para desgosto dos críticos franceses que preferiam A consciência de Zeno”, arrematou Svevo. Dois anos antes do aparecimento de Senilitá havia se casado e um ano depois nasceu sua filha Letizia que, ainda hoje, em Trieste, zela com amor pela obra do pai [Letizia Fonda Sávio morreu em Triste em 1993, aos 96 anos].

Mas, o silêncio com que foi recebido seu segundo romance era-lhe por demais eloqüente: “renunciou” à literatura. Foi trabalhar com o sogro, viajou a serviço pela Europa, passou algum tempo na Inglaterra, dedicou-se com grande fervor ao estudo do violino. Mas um importante acontecimento literário estava a caminho. Precisava aperfeiçoar-se no inglês, procurou o melhor professor de Triste. Não era outro senão James Joyce que logo afeiçoou-se a Svevo e a seus escritos. Chegava até a recitar de cor páginas inteiras de Senilitá. Alguns críticos, entre eles Otto Maria Carpeaux, identificam uma estranha semelhança entre o Leopold Bloom do Ulisses e o escritor triestino. Ambos trocaram cartas, com alguns toques de humor. Numa delas Joyce faz trocadilho com o nome da Berlitz School, a escola na qual deu aulas em Trieste, apontada pelo escritor inglês como Berlitz Cuolo…

Foi durante o seu interregno literário que Svevo tomou contato com a psicanálise. Procurava-a apenas “para entender que coisa seria uma perfeita saúde moral. Nada mais”. Ajudou um sobrinho a traduzir para o italiano a obra de Freud sobre sonhos. Faz revelações interessantes a respeito disso (na terceira pessoa, foi assim que ele escreveu seu Perfil Autobiográfico): “Foi então que Svevo muitas vezes se dedicou (solitário, isto é, em perfeita contradição com a teoria e a prática de Freud) a algumas provas de psicanálise em si mesmo. Toda a técnica do procedimento lhe ficou desconhecida, coisa da qual todos podemos perceber lendo o seu romance”.

Mas em 1919, “num átimo de forte inspiração subversiva”, começou a escrever a Consciência. “Não havia possibilidade de salvar-se. Precisava fazer aquele romance” –  declarou. Foi publicado em 1922. Novamente um silêncio e uma incompre­ensão glacial. Mandou o livro para Joyce, desesperançado. Qual o quê: este o mos­trou a Benjamin Crémieux e a Valery Lar­baud que o “descobrem” para o mundo. Logo depois Eugenio Montale publica em L’Esame uma Homenagem a Svevo. Es­tavam dados os passos para o reconhe­cimento do público leitor. Em 1928 come­çou a escrever seu quarto romance, Il Vecchione, mas um acidente de automó­vel tirou-lhe a vida aos 67 anos.

Svevo pode ser lido de várias maneiras. A critica é criativa na interpretação de suas obras. Existe o Svevo decadente; o realista; o poeta; o europeu ou da civili­zação literária; o romancista psicanalí­tico; o burguês em crise ou o escritor de vanguarda. Mas não resta dúvida que foi um dos criadores do moderno romance italiano e não há leitor que deixará de se deliciar com suas páginas irônicas, saga­zes, mergulhadas na análise psicológica, retrato pacato e sutil do conturbado início de século na Europa.

Seus comentadores acham que os vinte e cinco anos que passou sem escrever cola­boraram para fazer da Consciência um romance muito bem articulado, como que preso a uma potente inspiração. Consideram-no ao mesmo tempo um anti-romance pois Svevo conta-o de si para si mesmo: a convite do médico escreve sua autobiografia e esta não passa do documento de uma cura impossível. O que ele oferece ao leitor não admite conclusões, apenas hipóteses, disse Mário Lunetta, autor do Invito alla lettura di Svevo. O mesmo crítico prossegue detectando a propósito da Consciência quão ambíguas são as relações entre “verdade” e “memória”, “realidade” e “invenção”, “existência” e “literatura”.

Zeno Cosini, o anti-herói da Consciência, é preguiçoso e desastrado. Nunca consegue deixar o cigarro (problema que atormentou o próprio Svevo durante toda a sua vida). Trai sua mulher com a amante vice-versa. Pode se dar ao luxo de sonhar e de fazer o jogo de esconde-esconde com sua própria consciência porque não é obrigado a lutar cotidianamente pela sua sobrevivência, encarnando o grande emblema romanesco da ambigüidade e da impotência burguesa. No final, assume ares de um irônico memorialista numa combinação de tragédia e de grotesco, de tristeza e de riso. “Tutto nem mondo é burla”, comentou propositalmente Otto Maria Carpeaux, responsável também por uma das mais felizes observações sobre o livro: “convencido que  análise é a doença da qual se imagina ser a cura, Zeno resolve enganar deliberadamente o analista. O médico pediu uma autobiografia? Pois bem, sabe-se que todos os autobiógrafos mentem. Zeno também vai mentir ao médico. Vai engenhosamente frustrar a análise. Desmentido-a consegue descobrir a verdade sobre si mesmo: a consciência de Zeno”.

Sim, Zeno Cosini pode ser o retrato fiel do burguês arrependido e sem esperanças. Mas Italo Svevo não. Ê antes o profético e instigante autor a desnudar o homem, “este animal de óculos” que inventou artefatos alheios ao seu corpo e com o qual já não guarda mais nenhuma relação. Não tem nenhum outro sentido a antológica página final da Conscência, escrita vinte e seis anos antes da explosão atômica de Hiroxima e Nagasaki.

Em tempo: esta foi a primeira obra de ficção que tratou da psicanálise.

A consciência de Zeno, de Italo Svevo (tradução de Ivo Barroso). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

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