“Velho”, o grande ídolo dos jovens

Este texto faz parte do dossiê “Ligeiramente Trotskista – Hoje, no Planalto, antigos adeptos do revolucionário têm de equilibrar velhos ideais com problemas atuais”. Publicado no jornal Valor Econômico (no suplemento Eu&) em 24/01/2003.

Por Caio Túlio Costa

E muito difícil falar de trotskistas no poder, especialmente porque Leon Trotsky foi o único trotskista a tomar o poder de fato e lá permanecer por algum tempo. Na revolução russa, que durou 70 anos, Trotsky permaneceu cerca de sete anos atuando no centro do poder, ajudando Lênin ou no comando do Exército Vermelho. Quase um quarto dos 30 anos de duração do governo de Joseph Stalin, o qual só saiu do poder morto. Nikita Krushev comandou a então União Soviética por oito anos. Leonid Brejnev por 18 anos. Sete anos no poder podem parecer muito quando existem mandatos presidenciais renováveis a cada quatro anos na maioria dos países onde impera a democracia moderna – mas foram poucos anos na então União Soviética quando os primeiros ditadores do dito proletariado se agarravam ao poder durante décadas.

Daquilo que se convencionou chamar de  trotskismo importa entender que Trotsky, “o velho”, como é chamado pelos seus seguidores, desenvolveu a teoria da revolução permanente (que Trotsky dizia ter sido elaborada pelo próprio Marx) envolvida por quatro temáticas centrais:

1. A lei do desenvolvimento desigual e combinado;

2. A crítica à degeneração do Estado soviético e em particular à sua burocracia;

3. A elaboração das características constitutivas da sociedade socialista e

4. O internacionalismo.

Digno de registro, o termo trotskismo foi incontáveis vezes repudiado pelo próprio Trotsky. Para o cientista político Norberto Bobbio, o trotskismo “não constitui nem jamais constituiu uma doutrina codificada, nem um movimento organizado”. A propósito, existe uma piada sistematicamente lembrada pelos detratores quando repetem que um trotskista sozinho funda um partido, dois trotskistas criam uma organização internacional e três trotskistas provocam um cisma.

Apesar do ceticismo de Norberto Bobbio existem muitíssimas organizações autodenominadas trotskistas. Markus Sokol, .líder de uma das correntes trotskistas, O Trabalho, do PT, estima a existência de mais de trinta grupos diferentes na Inglaterra e outro tanto na Argentina:        “No Brasil, destacam-se quatro pequenos grupos. Dois estão dentro do PT: o próprio O Trabalho (ligado à antiga OCI, Organização Comunista Internacionalista, com sede na França, dirigida por Pierre Boussel-Lambert, hoje com 82 anos) e o grupo ligado à Democracia Socialista (braço do Secretariado Unificado e cujo líder histórico é o belga Ernest Mandel, morto em 95, aos 72 anos). Ambos os grupos consideram-se legítimos herdeiros da IV Internacional, o organismo de fomento à revolução socialista mundial fundado por Trotsky em setembro de 1938. Na órbita do PT, existem ainda o PSTU (Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado, aquele do refrão “contra burguês, vote 16”) e o PCO (Partido da Causa Operária).

A característica mais marcante em relação aos trotskistas no poder é que, ao chegar lá, ou já se tomaram obrigatoriamente ex-trotskistas ou passaram a não rezar mais segundo a cartilha trotskista, que implica centralização total de poder no Estado e tocar a revolução de forma planetária.

O mais notável entre eles foi o líder socialista francês Lionel Jospin, 65 anos. Chegou a ser primeiro-ministro da França e acabou defenestrado nas últimas eleições. Quando tinha 50 anos, Jospin abandonou a OCI para se dedicar ao Partido Socialista e dali foi alçado ao Palácio Matignon. “Tomou gosto pelas delícias do poder”, criticou Boussel-Lambert.

Tomam gosto quando já deixaram para trás o trotskismo, visto a partir de então como uma espécie de estado de espírito juvenil, coisa de estudante, maluquice radical… Uma das brincadeiras favoritas de Trotsky no poder era dizer aos auxiliares: “Vocês sabem, Lênin repetia sempre que é preciso fuzilar os revolucionários depois que eles fazem 30 anos! Fuzilar! Porque, depois dos 30, eles não valem mais nada!”

Jospin abandonou o trotskismo aos 50 anos. No Brasil, abandonam depois dos 30. Em 1986-87, houve o primeiro grande racha entre o pessoal da corrente O Trabalho, aquela que, no movimento estudantil dos anos 70 e 80, era conhecida por Liberdade e Luta, a Libelú. A ela pertenciam Luiz Favre (hoje na cúpula do PT e no coração de Martha Suplicy, a prefeita de São Paulo), Clara Ant (assessora de Lula no Planalto) e José Américo Dias (também na prefeitura paulistana e depois vereador pelo PT).

Todos guardam muito do jeito de ser trotskista, de fazer política, da disciplina e do rigor. Na mais completa biografia de Trotsky já escrita, o historiador simpatizante Pierre Broué conta que uma das principais armas de Trotsky em sua maneira toda especial de fazer política, de escrever, de propor acordos cujo mote eram nem a paz, nem a guerra. Ele sempre agia. Nunca reagia. Contra a Bíblia, Trotsky gostava de lembrar uma citação de Fausto num diálogo com Mefistófeles, no qual o diabo explica que “no princípio não era o verbo, mas a ação”.

Quem analisou o Palocci da fase de transição [primeiro ministro da Fazenda de Lula] entende melhor esta história de nem a paz, ‘nem a guerra. Antonio Palocci Filho, 42, ministro da Fazenda, também é ex-Libelú. Tanto Palocci quanto Luiz Gushiken, 52, secretário de comunicação de Governo, vêm da OCI, são ex-Libelú, ex-Iambertistas, ex-trotskistas .

O ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rosseto, 42, e Marco Aurélio Garcia, 60, assessor especial do presidente Lula, provêm da Democracia Socialista, a DS, ex-jornal “Em Tempo”, ligada ao Secretariado Unificado da IV Internacional. Rosseto ainda faz parte da DS.

Outro entre eles, também da DS, é o ex-prefeito de Porto Alegre, Raul Pont, o primeiro executivo público a introduzir fundos de pensão privados para o funcionalismo público municipal, o primeiro a quebrar os direitos da providência pública, um anátema para trotskistas porque, para eles, nada é pior do que o Estado mínimo. Ser trotskista significa ser a favor do Estado máximo. Todo o poder ao Estado. Pont fez o contrário.

Entre adversários, abundam as definições maldosas. O pessoal “lambertista”, de O Trabalho, é definido pelo seu estilo de rigidez doutrinária, rotulado de besta-fera de toda extrema-esquerda. O pessoal da Democracia Socialista é tido como dono de uma cultura mais esquerdizante, mas seria menos austero e com jeito para defender quase todas as causas.

De fato, a maioria dos trotskistas eméritos do Brasil já passou dos 30 e abandonou as fileiras da militância de extrema-esquerda. Estaria naquela fase da brincadeira de mau gosto de Lênin, na qual mereceria um pelotão de fuzilamento. Pelo sim, pelo não, deixou a militância radical e, no poder, conserva a disciplina treinada no movimento estudantil ou nas portas de fábrica, principalmente quando a ação política era clandestina e se entendia poder tocar a revolução desde as concentrações operárias.

Historiadores da Vida de Trotsky consideram que ele foi uma pessoa austera,:íntegra, exigente. Dizem ter sido um orador gigantesco e um diplomata irrepreensível. Do ponto de vista pessoal, era tido como janota. Por conta disso, Lênin fazia chacota ao explicitar o último desejo de Trotsky caso caísse nas mãos de um pelotão de fuzilamento contra-revolucionário: “Me dêem um pente”. Trotsky também nunca conseguiu se livrar do estigma da minoria. Nasceu dentro da facção menchevique (minoria) no movimento comunista. Lênin era da maioria, bolchevique. Os trotskistas seguem minoria por onde passam ou onde estão.

Aqueles que ainda não passaram dos 30 talvez não cresçam muito ali dentro. Faltam vocações. Trotsky não encontraria muita mão-de-obra hoje em dia para perseguir a revolução como ele sonhou necessário. De quebra, as esperanças de uma conflagração socialista mundial murcharam com a vitória do capitalismo como forma de governo e com a predominância geopolítica dos Estados Unidos. As antigas preocupações com o eixo comunista se transferiram para o eixo fundamentalista-terrorista.

Nas pontas, os trotskistas se reúnem em grupos diferentes na tentativa conceitual de dar mais poderes ao Estado. Nada indica que seja por agora. Os atuais membros da organização O Trabalho, por exemplo, resistem a entrar na burocracia governamental, ao contrário do pessoal da DS. Os lambertistas preferem não participar do governo e ainda discutem qual atitude terão em relação ao governo, se de apoio ou oposição.

Em seu testamento, o velho Trotsky pediu às gerações futuras que limpassem a vida “de todo o mal, de toda a opressão; de toda a violência, vivendo-a plenamente”. Não precisa ser trotskista nem no Brasil, nem em qualquer lugar para correr atrás dessas metas. O mote principal das idéias de Trotsky criticado pelos stalinistas era o de que a revolução socialista não podia alcançar a realização dentro do quadro nacional soviético: No caso do Brasil, o quadro nacional anda tão alquebrado que não haverá apetite para mais nada – nem da parte de ex-trotskistas e trotskistas com todo o poder nas mãos.

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