O Príncipe Eletrônico

Publicado in IANNI, Octavio. Enigmas da modernidade-mundo. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003

Na história da política, vista como teoria e prática, há muitos prín­cipes. Sucedem-se e convivem nas mais diversas situações, épocas e regiões: na monarquia e na república, na democracia e na tirania, na guerra e na paz, na revolução e na contra-revolução. Podem ser líder, caudilho, patriarca, ditador, presidente ou dirigente, civil, militar, religioso, intelectual. Há também mulheres, ainda que, em sua maio­ria, tenham sido homens. Mas podem ser brancos, amarelos, negros, mestiços, ocidentais, orientais, africanos, latino-americanos. Em ge­ral, inspiram-se em modelos teóricos ou práticos, reais ou imaginá­rios, ocidentais, europeus ou norte-americanos. Em muitos, predomi­na algo de ocidentalismo, sempre mesclado com localismo, tribalismo ou nacionalismo. Todos batalham o público e o privado, a ordem e o progresso, a tradição e a modernidade, a vocação e a missão, a sobe­rania e a hegemonia, a biografia e a história, o literal e o metafórico. Sim, o príncipe tem sido uma figura importante na teoria e prática da política. Sob diferentes denominações e adquirindo distintas figu­rações, aparece em toda a história dos tempos modernos.

O príncipe de Maquiavel, com o qual se inaugura no século XVI o pensamento político moderno, é a sua expressão mais conhecida, notável, influente e controvertida. São muitos os pensadores que dia­logam aberta ou veladamente com esse tipo ideal ou arquétipo da teoria e da história. Ou então, há muitos textos de política que foram e continuam a ser lidos e discutidos tendo-o como referência. Sem esquecer que têm sido numerosos os governantes e candidatos a governantes que tomam o livro de Maquiavel como leitura ocasional ou freqüente. Provavelmente todos, pensadores e governantes, bus­cam esclarecer o enigma do contraponto fortuna e virtù. Buscam criar, desenvolver ou inventar a sua virtù, simultaneamente ao empe­nho de descobrir como se constituem, formam e transformam as con­dições político-econômicas e socioculturais, ou os jogos das forças sociais que constituem a fortuna. Em todos os casos, estão em causa as figuras e as figurações possíveis e impossíveis do príncipe, como dirigente, governante, tirano, presidente, monarca ou patriarca. Na medida em que se realiza como príncipe, este se mostra preparado para pensar e decidir, negociar e dirigir, administrar e agir, conciliar e dividir, premiar e punir, constituindo-se simultaneamente como sím­bolo ou emblema, para uns e outros, indivíduos e coletividades, popu­lação e povo, setores sociais e sociedade, nacionais e estrangeiros.

Muito tempo depois, no século XX, Gramsci formula a teoria do Moderno príncipe, isto é, do partido político como intérprete e con­dutor de indivíduos e coletividades, grupos e classes sociais. O moder­no príncipe é, simultaneamente, intelectual coletivo, capaz de inter­pretar tanto os seguidores do partido como os outros setores da socie­dade, indiferentes e adversários. Nesse sentido, o moderno príncipe se revela capaz de construir, realizar e desenvolver a hegemonia de um projeto de Estado-Nação, envolvendo a organização, o desenvolvi­mento ou a transformação da sociedade.

Tanto no que se refere a O príncipe, de Maquiavel como a O mo­derno principe, de Gramsci, estão em causa figuras e figurações fun­damentais da política. Tudo o que pode ser específico da política neles se polariza, sintetiza ou galvaniza. Nesse sentido é que, em última instância, esses tipos ideais ou arquétipos estão referidos à capacidade de construir hegemonias, simultaneamente à organização, consolidação e desenvolvimento de soberanias.

Sim, é possível encontrar ressonâncias do príncipe maquiavélico no moderno príncipe gramsciano. Mas é inegável que os dois tipos ideais ou arquétipos apanham aspectos fundamentais da política como teoria e prática. Respondem a diferentes desafios histórico-sociais, próprios de cada época. Implicam diferentes avaliações sobre o dirigente e as condições de sua atuação, vistos em suas especificida­des e em suas inter-relações, tensões e acomodações, contradições e dissociações. Mas sintetizam algo da essência da política, ao ressaltar como fundamentais as categorias hegemonia e soberania.

O dilema que se coloca, no entanto, é o de se saber se no fim do século XX continuam convincentes os emblemas, tipos ou arquétipos formulados por Maquiavel e Gramsci; sem esquecer que essas figuras e figurações ocorrem em outros autores, ainda que em outras lingua­gens e diferentes perspectivas teóricas. Reconhecendo-se que são outros os desafios histórico-sociais da globalização em curso no fim do século XX, cabe perguntar se hegemonia e soberania, compreen­dendo líder e seguidores, dirigentes e subalternos, aliados e adversá­rios, ou virtù e fortuna, ainda têm algo, muito ou nada a ver com um, outro ou ambos os príncipes. Nesse sentido, cabe perguntar se a crise que parece atingir duramente um e outro príncipe não acaba por colo­car em causa o que se poderia entender por hegemonia e soberania, tanto quanto virtù e fortuna, bem como outras categorias clássicas da política.

No fim do século XX, há sérios indícios de que os príncipes de Maquiavel e Gramsci, assim como outros teóricos da Política, enve­lheceram, exigem outras figurações ou simplesmente se tornaram ana­crônicos. Na época da globalização, alteram-se quantitativa e qualita­tivamente as formas de sociabilidade e os jogos das forças sociais, no âmbito de uma configuração histórico-social da vida, trabalho e cultura na qual as sociedades civis nacionais se revelam províncias da sociedade civil mundial em formação. Nessa época, as tecnologias ele­trônicas, informáticas e cibernéticas impregnam crescente e generalizadamente todas as esferas da sociedade nacional e mundial; e de modo particularmente acentuado as estruturas de poder, as tecnoestruturas, os think-tanks, os lobbies, as organizações multilaterais e as corporações transnacionais, sem esquecer as corporações da mídia. Esse pode ser o clima em que se forma, impõe e sobrepõe O príncipe eletrônico, sem o qual seria difícil compreender a teoria e a prática da política a na época da globalização.

Já não se trata mais apenas do quarto poder, do qual se come­çou a falar no século XIX. Trata-se de um desenvolvimento novo, intenso e generalizado, abrangente e predominante da mídia no âmbi­to de tudo o que se refere à política. Um predomínio que desafia os clássicos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, assim como o partido político, o sindicato, o movimento social e a corrente de opi­nião pública.

Na época da globalização, modificam-se mais ou menos radical­mente as condições sob as quais se desenvolve a teoria e a prática da política. Em primeiro lugar, a globalização do capitalismo, como modo de produção e processo civilizatório, propicia o desenvolvimen­to de relações, processos e estruturas de dominação política e apro­priação econômica de alcance mundial. Alteram-se as formas de socia­bilidade e os jogos das forças sociais, no âmbito de uma vasta, comple­xa e contraditória sociedade civil mundial em formação. Isto significa a emergência e dinâmica de grupos sociais, classes sociais, estruturas de poder, acomodações, tensões e lutas em escala mundial. Em segun­do lugar, no bojo desse mesmo processo de globalização político-eco­nômica e sociocultural, desenvolvem-se tecnologias eletrônicas, infor­máticas e cibernéticas que agilizam, intensificam e generalizam as arti­culações, as integrações, as tensões, os antagonismos, as fragmenta­ções e as mudanças socioculturais e político-econômicas, pelos quatro cantos do mundo. Em terceiro lugar, e simultaneamente a todos os desenvolvimentos, nexos, contradições e transformações em curso, desenvolve-se uma nova configuração histórico-social de vida, traba­lho e cultura, desenhando uma totalidade geoistórica de alcance glo­bal, compreendendo indivíduos e coletividades, povos, nações e nacio­nalidades, culturas e civilizações. Esse é o novo e imenso palco da his­tória, no qual se alteram mais ou menos radicalmente os quadro sociais e mentais de referência de uns e outros, em todo o mundo.

Esse é o novo, imenso, complexo e difícil palco da política com teoria e prática. Aí as instituições clássicas da política estão sendo desafiadas a remodelar-se, ou a ser substituídas, como anacronismos, já que outras e novas instituições e técnicas da política estão sendo criadas, praticadas e teorizadas. Em lugar de O príncipe de Maquiavel e de O moderno príncipe de Gramsci, assim como de outros prínci­pes pensados e praticados no curso dos tempos modernos, cria-se O príncipe eletrônico, que simultaneamente subordina, recria, absorve ou simplesmente ultrapassa os outros.

Para Maquiavel, o príncipe é uma pessoa, uma figura política, o líder ou condottiere, capaz de articular inteligentemente suas qualida­des de atuação e liderança (virtù) e as condições sociopolíticas (fortu­na) nas quais deve atuar. A virtù é essencial, mas defronta-se todo o tempo com a fortuna, que pode ser ou não favorável, podendo ser tão adversa que a virtù não encontra possibilidades de realizar-se. Mas a fortuna pode ser influenciada pelo descortino, a atividade e a diligên­cia do príncipe.

Nos principados inteiramente novos, onde haja um novo prínci­pe, se encontra dificuldade maior ou menor para mantê-los, conforme tenha mais ou menos predicados (virtù) aquele que os conquista. E como o fato de passar alguém de particular a príncipe pressupõe valor (virtù) ou fortuna, é de crer que uma ou outra dessas duas coisas ate­nue em parte muitas dificuldades … Os estados rapidamente surgidos, como todas as outras coisas da natureza que nascem e crescem depres­sa, não podem ter raízes e as aderências necessárias para a sua conso­lidação. Extingui-Ios-á a primeira borrasca, a menos que, como se dis­se acima, os seus fundadores sejam tão virtuosos (virtùosi), que sai­bam imediatamente preparar-se para conservar o que a fortuna lhes concedeu e lancem depois alicerces idênticos aos que os demais prín­cipes construíram antes de tal se tornarem… Para que não se anule o nosso livre-arbítrio, eu, admitindo embora que a fortuna seja dona da metade das nossas ações, creio que, ainda assim, ela nos deixa senho­res da outra metade ou pouco menos. Comparo a fortuna a um daqueles rios, que quando se enfurecem, inundam as planícies, derri­bam árvores e casas, arrastam terra de um ponto para pô-la em outro: diante deles não há quem não fuja, quem não ceda ao seu impulso, em meio algum de lhe obstar. Mas, apesar de ser isso inevitável, nada impediria que os homens, nas épocas tranqüilas, construíssem diques e canais, de modo que as águas, ao transbordarem do seu leito, cor­ressem por estes canais ou, ao menos, viessem com fúria atenuada, produzindo menores estragos. Fato análogo sucede com a fortuna, a qual demonstra todo o seu poderio quando não encontra ânimo (virtù) preparado para resistir-lhe e, portanto, volve os seus ímpetos para os pontos onde não foram feitos diques para contê-la… Creio que isto é suficiente para demonstrar, em tese, a possibilidade de nos opormos à fortuna… Concluo, por conseguinte, que os homens prosperam quando a sua imutável maneira de proceder e as variações da fortuna se harmonizam, e caem quando ambas as coisas divergem. (1)

Para Gramsci, o moderno príncipe já não é uma pessoa, figura política, líder ou condottiere, visto como personificação, síntese e gal­vanização da política, mas uma organização. É o partido político, no qual se combinam e fertilizam-se as capacidades de uns e outros, líde­res e seguidores, de tal modo que a interpretação e atividade inteligen­tes, diante do jogo das forças sociopolíticas, cabe a ele. Enquanto moderno príncipe, já que se cria no âmbito da sociedade de classes, burguesa, capitalista, o partido político pode realizar a metamorfose essencial das inquietações e reivindicações sociais, em sentido amplo, em política, como programa de organização, atuação, conquista do poder e preservação deste. Cabe ressaltar aqui que a teoria de Gramsci diz respeito ao partido político empenhado em expressar as inquietações e as reivindicações dos seus seguidores; mas, simultanea­mente, capaz de interpretar as inquietações e reivindicações dos outros setores da sociedade. Quando se trata de luta pela conquista do poder, no entanto, seu objetivo principal, mais ambicioso, é o desafio de construir hegemonia alternativa, na qual se expressam as classes e os grupos sociais subalternos em luta para realizar sua von­tade coletiva nacional-popular, alcançando a soberania.

O moderno príncipe, o mito-príncipe, não pode ser uma pessoa real, um indivíduo concreto; só pode ser um organismo; um elemento complexo da sociedade no qual já tenha se iniciado a concretização de uma vontade coletiva reconhecida e fundamentada parcialmente na ação. Este organismo já é determinado pelo desenvolvimento históri­co, é o partido político: a primeira célula na qual se aglomeram ger­mes de vontade coletiva que tendem a se tornar universais e totais… É preciso também definir a vontade coletiva e a vontade política em geral no sentido moderno; a vontade como consciência atuante da necessidade histórica, como protagonista de um drama histórico real e efetivo… A formação de uma vontade coletiva nacional-popular é impossível se as grandes massas dos camponeses cultivadores não irrompem simultaneamente na vida política… Uma parte importante do moderno príncipe deverá ser dedicada à questão de uma reforma intelectual e moral, isto é, à questão religiosa ou de uma concepção do mundo… Estes dois pontos fundamentais: formação de uma vontade coletiva nacional-popular, da qual o moderno príncipe é ao mesmo tempo o organizador e a expressão ativa e atuante, e reforma intelec­tual e moral, deveriam constituir a estrutura do trabalho… Uma refor­ma intelectual e moral não pode deixar de estar ligada a um progra­ma de reforma econômica. E mais, o programa de reforma econômi­ca é exatamente o modo concreto através do qual se apresenta toda reforma intelectual e moral. O moderno príncipe, desenvolvendo-se, subverte todo o sistema de relações intelectuais e morais, na medida em que seu desenvolvimento significa de fato que cada ato é conce­bido como útil ou prejudicial, como virtuoso ou criminoso… O fato da hegemonia pressupõe indubitavelmente que se deva levar em con­ta os interesses e as tendências dos grupos sobre os quais a hegemonia será exercida; que se forme certo equilíbrio de compromisso, isto é, que o grupo dirigente faça sacrifícios de ordem econômico-corpora­tiva. Mas também é indubitável que os sacrifícios e o compromisso não se relacionam com o essencial, pois se a hegemonia é ético-políti­ca também é econômica; não pode deixar de se fundamentar na função decisiva que o grupo dirigente exerce no núcleo decisivo da atividade econômica. (2)

Além de outros aspectos teóricos também importantes, é inegável que Maquiavel e Gramsci trabalham principalmente as categorias hegemonia e soberania. Em linguagens diversas, estas categorias rea­firmam-se como essenciais da política, em dois momentos particular­mente notáveis da história dos tempos modernos. Esses, e muitos outros criados ao longo dessa história, são príncipes da modernidade.

O príncipe eletrônico, no entanto, não é nem condottiere nem partido político, mas realiza e ultrapassa os descortinos e as atividades dessas duas figuras clássicas da política. O príncipe eletrônico é uma entidade nebulosa e ativa, presente e invisível, predominante e ubíqua, permeando continuamente todos os níveis da sociedade, em âmbito local, nacional, regional e mundial. É o intelectual coletivo e orgânico das estruturas e blocos de poder presentes, predominantes e atuantes em escala nacional, regional e mundial, sempre em conformi­dade com os diferentes contextos socioculturais e político-econômicos desenhados no novo mapa do mundo.

É óbvio que o príncipe eletrônico não é nem homogêneo nem monolítico, tanto em âmbito nacional como mundial. Além da com­petição evidente ou implícita entre os meios de comunicação de mas­sas, ocorrem freqüentes irrupções de fatos, situações, relatos, análises, interpretações e fabulações que pluralizam e democratizam a mídia. Sem esquecer que são inúmeros os intelectuais de todos os tipos, jor­nalistas, fotógrafos, cineastas, programadores, atores, entrevistado­res, redatores, autores, psicólogos, sociólogos, relações públicas, espe­cialistas em eletrônica, informática e cibernética e outros – que diver­sificam, pluralizam, enriquecem e democratizam a mídia. Há jornais, revistas, livros, rádios, televisões e outros meios que expressam for­mas e visões alternativas do que vai pelo mundo, desde o narcotráfico e o terrorismo transnacionais às guerras e revoluções, dos eventos mundiais da cultura popular aos movimentos globais do capital espe­culativo. Assim se enriquece o príncipe eletrônico, tornando-o mais sensível ao que vai pelo mundo, desde a perspectiva das classes e gru­pos sociais subalternos até a perspectiva das classes e grupos sociais predominantes.

Em geral, no entanto, o príncipe eletrônico expressa principalmen­te a visão do mundo prevalecente nos blocos de poder predominantes, em escala nacional, regional e mundial, habitualmente articulados.

Todo indivíduo, mesmo o que desfruta menor autonomia, acre­dita-se soberano nos domínios da sua consciência… A consciência foi, desde o princípio, produto da sociedade e continuará a sê-lo enquan­to existam homens, segundo Marx… A indústria da manipulação das consciências é uma criação dos últimos cem anos. Seu desenvolvimen­to tem sido tão rápido e tão diversificado que sua existência permane­ce ainda hoje incompreendida e quase incompreensível… Enquanto se discute com paixão e detalhadamente acerca dos novos meios técnicos – rádio, cinema, televisão, disco, CD, fax, internet e outros; enquan­to se estuda o poder da propaganda, de publicidade e das relações pú­blicas, a indústria da manipulação das consciências continua sem ser considerada em seu conjunto, como um todo… A indústria da mani­pulação das consciências nos vai constranger, em futuro muito próxi­mo, a que a consideremos uma potência radicalmente nova, em cres­cente desenvolvimento, impossível de ser medida com base nos parâ­metros disponíveis. Estamos ante a indústria chave do século XX.(3)

No âmbito da mídia em geral, enquanto uma poderosa técnica social, sobressai a televisão. Trata-se de um meio de comunicação, informação e propaganda presente e ativo no cotidiano de uns e outros, indivíduos e coletividades, em todo o mundo. Registra e inter­preta, seleciona e enfatiza, esquece e sataniza o que poderia ser a reali­dade e o imaginário. Muitas vezes transforma a realidade, seja em algo encantado seja em algo escatológico, em geral virtualizando a realida­de em tal escala que o real aparece como forma espúria do virtual.

O predomínio dos papéis e do poder da televisão pode ser obser­vado desde a sua emergência, na era da comunicação global, como um participante ativo nos eventos que ela empenhadamente ‘cobre’. A televisão não pode mais ser considerada (se alguma vez o foi) mera observadora e repórter de eventos. Está intrinsecamente encadeada com estes eventos e tem se tornado claramente parte integral da reali­dade que noticia… As relações da imprensa, rádio e televisão com o sistema político são governadas, em cada país, pela natureza do siste­ma político e das normas que caracterizam sua cultura política. A estrutura sociopolítica e econômica das diferentes sociedades também determina a estrutura interna de seu sistema de mídia, os métodos de financiamento deste e, consequentemente, das relações intersistêmicas das diferentes organizações da mídia. (4)

Um capítulo fundamental da democracia eletrônica envolve a convergência e a mobilização de mercado e marketing, mercadorias e idéias, opiniões e comportamentos, inquietações e convicções. São dimensões psicossociais, socioculturais e político-econômicas que podem polarizar-se em atividades e imaginários de indivíduos e cole­tividades. Traduzem-se também em opções, convicções e ações políti­cas, em geral influenciadas pela mídia eletrônica e impressa, destacan­do-se a televisiva.

Esse o contexto no qual também estão presentes as corporações transnacionais. Interessadas no comércio de mercadorias e na publici­dade, bem como na expansão dos mercados e no crescimento do con­sumo, elas se tornam agentes importantes, freqüentemente decisivo, do modo pelo qual se organizam, funcionam e expandem as novas tecnologias da comunicação. Sem esquecer que grande parte da mídia se organiza em corporações e, muitas vezes, faz parte de conglomerados também transnacionais. Há, portanto, toda uma vasta e comple­xa rede de articulações corporativas envolvendo mercados e idéias, mercadoria e democracia, lucratividade e cidadania.

A luta na qual estamos engajados é de natureza política e em âmbito político, mas ainda não está claro se o futuro será de liberda­de econômica, social, individual e política… O sucesso na política não é mágico. Nossos inimigos não são mais inteligentes do que nós e não são super-homens. Se formularmos uma interpretação política, deve­ríamos eleger alguns objetivos políticos… Sinto que é essencial que as firmas multinacionais que estão sendo criticadas criem um grupo organizado de profissionais talentosos e experientes. Assim, quando necessário, consultores especiais, alheios às relações públicas cotidia­nas da firma, podem concentrar seus esforços em questões políticas enfrentadas pelas multinacionais. Na busca de uma receptividade pública e na eliminação da atitude crítica, as firmas multinacionais têm uma arma valiosa a seu dispor: a publicidade e a movimentação de pessoal em campo… Precisamos reativar nossas tradicionais asso­ciações profissionais, ou olhar além delas, por novos aliados, em asso­ciações de camponeses, trabalhadores e proprietários de pequenos negócios, muitos dos quais têm sido suspeitosos do capitalismo mul­tinacional, com boas razões. Precisamos afirmar o interesse comum de todas as instituições que criam riqueza: grandes e pequenas, priva­das e governamentais, nacionais e multinacionais. Em síntese, precisa­mos afirmar o pluralismo e a diversidade da condição humana, um exemplo que é dado pela democracia tanto quanto pelo livre mercado de mercadorias e idéias. O capitalismo multinacional nunca deve apa­recer como um rival dominador, relativamente aos interesses locais, nacionais ou tribais. (5)

O que singulariza a grande corporação da mídia é que ela realiza limpidamente a metamorfose da mercadoria em ideologia, do merca­do em democracia, do consumismo em cidadania. Realiza limpida­mente as principais implicações da indústria cultural, combinando a produção e a reprodução cultural com a produção e reprodução do capital; e operando decisivamente na formação de mentes e cora­ções em escala global.

As mudanças que abalam o mundo criam insegurança. Elas exi­gem que o povo reavalie e mude de atitude, de modo a administrar as novas mudanças. O povo busca orientação e informação, mas tem também uma forte necessidade de entretenimento e recreação. Para fazer face a essas diversas necessidades, uma corporação global da mídia tem responsabilidades especiais. A comunicação é um elemento básico de qualquer sociedade. A mídia torna essa comunicação possí­vel, ajuda a sociedade a compreender as idéias políticas e culturais e contribui para formar a opinião pública e o consenso democrático. Hoje, a sociedade usa a mídia para exercer uma forma de autocontro­le. Com estas responsabilidades como pano de fundo, os executivos da mídia devem permanecer conscientes das suas obrigações, respei­tando princípios éticos em suas atividades. (6)

São muitos os caminhos, assim como as redes, que conduzem à política eletrônica, à democracia eletrônica, à tirania eletrônica ou ao príncipe eletrônico. Há poderosos e predominantes interesses corpo­rativos impondo-se mais ou menos decisivamente às instituições clássicas da política, que compreendem partidos políticos, sindica­tos, movimentos sociais, correntes de opinião pública e governos, em seus poderes Legislativo, Executivo e Judiciário.

No âmbito da democracia eletrônica, dissolvem-se as frontei­ras entre o público e o privado, o mercado e a cultura, o cidadão e o consumidor, o povo e a multidão. Aí o programa televisivo de debate e informação política tende a organizar-se nos moldes do programa de entretenimento. Aos poucos, o político, o partido, a opinião públi­ca, o debate sobre problemas da realidade nacional e mundial, as opções dos eleitores e a controvérsia sobre planos alternativos de governo, tudo isso tende a basear-se nas linguagens, recursos técnicos, teatralidade e encenação desenvolvidos pelos programas de entreteni­mento. São programas multimídia, coloridos, sonoros, recheados de surpresas, movimentados, combinando assuntos diversos e díspares, alternando locução, diálogo, depoimento, comportamento, auto-aju­da, conjuntos musicais, cantores etc. Esse é o clima no qual a política tem sido levada a inserir-se, como espetáculo semelhante a espetáculo dentro do espetáculo. Modificam-se signos e significados, figuras e figurações, de tal maneira que ocorre a dissolução da política na cul­tura eletrônica de massa, na qual se dissolvem ou se deslocam territó­rios e fronteiras envolvendo os espaços público e privado, o consumis­mo e a cidadania, a corrente de opinião pública e o comportamento de auto-ajuda, a realidade e a virtualidade.

Estamos diante de complexas transformações da esfera pública, em grande parte determinadas principalmente pelo modo como evo­lui o sistema dos meios de comunicação. A esfera pública, portanto a política, era distinta, ao menos em termos de princípios, não só da esfera privada mas da atividade empresarial. Esta fronteira tem sido continuamente suprimida, principalmente pelo modo como tem evo­luído o sistema televisivo, que determina uma espécie de unificação das diversas esferas, em especial da política, comércio, espetáculo. Ainda que continue a existir uma distinção formal entre programas de informação, espetáculo e publicidade, ocorre freqüentemente que os políticos preferem comparecer aos programas mais populares, nos quais a política se mistura logo com outros gêneros. E criam-se pro­gramas televisivos de informação política cada vez mais freqüente­mente modelados em esquemas de programas de entretenimento. Assim, o político não deve apenas adequar-se às regras deste outro tipo de programa mas, principalmente, é percebido pela opinião pública como parte de um mundo que lhe é mais familiar, no qual aquelas atividades se revelam indistinguíveis. O político aparece como um produto entre outros, é avaliado com critérios que se aproximam bastante dos vigentes no mundo do consumo. Assim, esta mudança dos parâmetros é a real transformação, mais do que o papel prepon­derante que a televisão adquiriu no jogo político. E uma confirmação desta tendência vem do fato de que a tecnopolítica é constituída cada vez mais amplamente pelos instrumentos que vêm diretamente do mundo da produção, do comércio, da publicidade. (7)

Este é um problema fundamental da relação entre a mídia televi­siva e a política: muito do que é a política se revela espetáculo, entre­tenimento, consumismo, publicidade. Grande parte das linguagens das instituições políticas clássicas da modernidade dissolve-se, transforma-se ou simplesmente anula-se no âmbito das linguagens televisivas. Modificam-se ou apagam-se territórios e fronteiras, atro­pelando problemas fundamentais e curiosidades, política e novela, democracia e tirania, de par com realidade e virtualidade.

Nesse mundo virtual, criado por meio da manipulação de tecnolo­gias eletrônicas, informáticas e cibernéticas, forma-se a mais vasta mul­tidão solitária. Espalhada pelas diferentes localidades, nações e regiões, em continentes, ilhas e arquipélagos, são muitos os que se transformam em criações da mídia televisiva, na qual muito do que ocorre no mun­do se revela entretenimento, publicidade, consumismo, espetáculo.

Na ‘ágora eletrônica’, indivíduos isolados, anônimos, mas pre­sumivelmente bem informados, podem reunir-se sem o risco de vio­lência ou infecção, engajando-se em debates, troca de informações ou meramente não fazendo nada. (8)

O príncipe eletrônico é o arquiteto da ágora eletrônica, na qual todos estão representados, refletidos, defletidos ou figurados, sem o risco da convivência nem da experiência. Aí, as identidades, alterida­des ou diversidades não precisam desdobrar-se em desigualdades, ten­sões, contradições, transformações. Aí, tudo se espetaculiza e estetiza, de modo a recriar, dissolver, acentuar e transfigurar tudo o que pode ser inquietante, problemático, aflitivo.

Se queremos compreender a crescente importância das tecnolo­gias eletrônicas, informáticas e cibernéticas no mundo da mídia, o que é fundamental para compreendermos a crescente importância da mídia em todas as esferas da sociedade nacional e mundial, é impor­tante começar pelo reconhecimento de que o século XX está profun­damente impregnado, organizado e dinamizado por técnicas sociais. São inúmeras as inovações tecnológicas que adquirem o significado de poderosas e influentes técnicas sociais. 

Assim, o que parece neutro, útil, positivo, logo se revela eficiente, influente ou mesmo decisivo, no modo pelo qual se insere nas relações, processos e estruturas que articulam e dinamizam as diferentes esferas da sociedade, em âmbito local, nacional, regional e mundial. Tomados em seu devido tempo e contexto, esse pode ser o caso do telefone, telégrafo, rádio, cinema, televisão, computador, fax, correio eletrônico, internet, ciberespaço e outras inovações e combinações de tecnologias eletrônicas, informáticas e cibernéticas. São organizadas, mobilizadas, dinamizadas e generalizadas como técnicas de comuni­cação, informação, propaganda, entretenimento, mobilização e indução de correntes de opinião pública, mitificação ou satanização de eventos, figuras, partidos, movimentos e correntes de opinião, colabo­rando mais ou menos decisivamente na invenção de heróis ou demô­nios, bem como na fabricação de democracias ou tiranias. (9)

Note-se que as tecnologias da mídia e das suas articulações sistêmicas, tomadas em si, sem quaisquer aplicações, podem ser considera­das inocentes, neutras. Quando inseridas nas atividades sociais, nas formas de sociabilidade, ou melhor, nos jogos das forças sociais, nes­ses casos se transformam em técnicas sociais. Passam a dinamizar, intensificar, generalizar, modificar ou bloquear relações, processos e estruturas sociais, econômicas, políticas e culturais ativas em todas as esferas da sociedade nacional e mundial. Nesse sentido é que adqui­rem a presença, força e abrangência de técnicas sociais de organiza­ção, funcionamento, mudança, controle, administração das formas de sociabilidade e dos jogos das forças sociais.

As práticas e as agências que têm como objetivo principal mode­lar o comportamento humano e as relações sociais, eu as descrevo como técnicas sociais. Sem elas e as invenções tecnológicas que as acompanham, as vastas e radicais mudanças do mundo contemporâ­neo jamais teriam sido possíveis. (10)

No século XX, muitos são desafiados a reconhecer a crescente importância das tecnologias da comunicação, informação, processa­mento e difusão, sempre envolvendo decisão, como poderosas técni­cas sociais. À medida que se multiplicam os descobrimentos científi­cos e as suas traduções em tecnologias eletrônicas, informáticas e cibernéticas, multiplicam-se as faculdades e as capacidades políticas, econômicas e culturais das técnicas sociais, isto é, dos intelectuais, téc­nicos, profissionais, gerentes, empresários, governantes, proprietários e outros que dispõem das aplicações e dos usos sociais, econômicos, políticos e culturais das técnicas.

Como as tecnologias de comunicação, informação e propaganda não são transparentes, em suas significações explícitas e implícitas, as avaliações dos intérpretes e usuários oscilam do otimismo ao pessi­mismo, passando pela idéia de inocuidade ou de efeitos deslumbran­tes. Fala-se até em contribuição para o desenvolvimento da democracia – assim como da tirania. Em todos os casos, está sempre em cau­sa a implicação da tecnologia eletrônica, informática e cibernética, em geral articuladas sistemicamente como técnicas sociais devido ao modo pelo qual se inserem no jogo das forças sociais.

As guerras mundiais, o nazifascismo, o crescimento dos trustes e cartéis, a formação de corporações transnacionais e os desenvolvi­mentos das tecnologias da mídia modificaram as condições e as possi­bilidades da comunicação, informação, entretenimento e cultura de indivíduos e coletividades, povos e multidões, por todo o mundo. Forma-se e expande-se a indústria cultural, influenciando mais ou menos decisivamente o mundo da política. Algumas dessas tendências já se anunciavam na década de 1930, com a formação da máquina de informação e propaganda do nazismo, combinando o rádio, a imprensa, os cartazes, o cinema, os eventos patrióticos, as iniciativas culturais e a ênfase na missão civilizatória do povo ariano. Nessa época, era o nazismo que se apresentava como o portador e missioná­rio da civilização ocidental e cristã, algo que posteriormente ressoa na máquina de informação e propaganda do neoliberalismo.

Sim, nos anos trinta já se percebiam algumas das influências deci­sivas que as novas tecnologias de comunicação começavam a provocar nas diferentes esferas da sociedade e na política em especial. Foi o nazismo que tomou a dianteira do uso das novas tecnologias e da mídia em geral, sendo que simultaneamente, e em outros momentos, também outros regimes políticos desenvolveriam políticas de comuni­cação, informação e propaganda nos mesmos termos e com sofistica­ção crescente, inclusive pela aquisição de novas tecnologias e novos arranjos sistêmicos. Assim se iniciou um deslocamento radical do lugar da política e do modo de construir hegemonias e soberanias em todo o mundo; sempre a partir das raízes e inspirações emanadas dos centros europeus e norte-americanos, da civilização ocidental e cristã.

Ao dispor das novas tecnologias, os líderes, os políticos, os geren­tes, as organizações, as empresas, as agências governamentais, as organizações multilaterais, as igrejas ou organizações religiosas e outros, indivíduos e entidades, direta e indiretamente empenhados na política, passam a atuar além dos partidos políticos, sindicatos, movi­mentos sociais e correntes de opinião pública. Estas instituições clás­sicas da política são instrumentalizadas, transformadas, mutiladas ou simplesmente marginalizadas. Em escala crescente, predominam as novas tecnologias da comunicação, informação e propaganda, às vezes com objetivos democráticos, mas em outras e muitas vezes com objetivos autoritários. Sim, porque as novas tecnologias estão organi­zadas em empresas, corporações ou conglomerados, como empreen­dimentos capitalistas articulados com grupos, classes ou blocos de poder predominantes em escala nacional ou mundial.

A democracia está entrando em uma nova fase, mas com uma diferença. Em lugar do antigo grupo local, no qual predominavam os contatos face a face, forma-se uma nova coletividade nacional e mes­mo mundial, comunicando-se por meio de imagens e sons desincorpo­rados. Imagens flutuantes produzidas por máquinas estão deslocando a riqueza dos contatos imediatos. O estranho é que a corrente da comunicação se organiza principalmente em direção única. O ouvinte, ou espectador, não tem escolha, a não ser manter-se passivo. Não há o dar-e-receber, nenhuma oportunidade de discussão com a voz do rádio ou a silhueta na tela. A despeito das facilidades sem precedentes para a comunicação, os membros da nova coletividade parecem para­doxalmente condenados à passividade, ao anonimato e ao isolamen­to, maiores do que nunca, sem precedentes. (11)

Quando se trata da mídia organizada em empresas, corporações e conglomerados, atuando em âmbito local, nacional, regional e mundial, logo se coloca sua importância na organização sistêmica em que se baseia grande parte da integração social prevalecente no mundo. As condições e as possibilidades de organização, funcionamento, dinami­zação e generalização das formas de vida, trabalho e cultura baseiam-­se, em larga medida, no modo pelo qual a mídia exerce as suas ativi­dades, presenças e influências. Ao lado do mercado e planejamento, das agências governamentais, das organizações multilaterais, das em­presas, corporações e conglomerados transnacionais, a mídia impres­sa e eletrônica, da qual se destaca a televisiva, exerce uma influência acentuada ou preponderante nas relações, processos e estruturas de integração social, desde cima, espalhando-se pelas diferentes esferas da vida social. Ao lado das suas atividades pluralistas e democráticas, que favorecem o debate, a controvérsia e a mudança social em geral, é inegável que a mídia também influencia mais ou menos decisiva­mente a integração, isto é, a articulação sistêmica de uns e outros, coi­sas, gentes e idéias, em escala local, nacional, regional e mundial. (12)

De par com os desenvolvimentos das tecnologias eletrônicas, informáticas e cibernéticas, desenvolvem-se as redes, o fax, o e-mail, a internet, a multimídia, o hipertexto, a realidade virtual, o ciberespa­ço, a sociedade informática, o mundo sistêmico. De com o mundo geoistórico, desenhado pela modernidade, emerge o mundo virtual, tecido sistemicamente, desenhado pela pós-modernidade. Um e outro parecem distintos, separados, autônomos, umas vezes justapostos, outras dissonantes, estridentes. É como se a experiência e a consciênc­ia se dissociassem, da mesma maneira que as palavras e as coisas, a linguagem e a imagem, o real e o virtual, o ser e o devir, o dito e a desdita. São muitos, muitíssimos, os que navegam no ciberespaço sideral, levitando aquém e além da realidade geoistórica, político-econômica e sociocultural, desterritorializados, volantes, indeléveis, flutuantes. Esse pode ser o palco da pós-modernidade, onde parecem dissolver-se o espaço e o tempo, a história e a memória, a lembrança e o esquecimento, as façanhas e as derrotas, as ideologias e as utopias. Tudo está navegando no presente presentificado, petrificado. Aí parece predominar a multiplicidade, descontinuidade, fragmentação, simula­cro, desconstrução; como em uma festa caleidoscópica e babélica permanente.

Esse mundo da pós-modernidade, no entanto, está amplamente articulado em moldes sistêmicos. Ele se sustenta no ar, desenraizado, volante, virtual e sideral, em toda uma vasta, complexa e eficaz rede sistêmica, por meio da qual se articulam mercados e mercadorias, capitais e tecnologias, força de trabalho e mais-valia. Aliás, o conjun­to das tecnologias eletrônicas, informáticas e cibernéticas, com as suas redes e virtualidades, hipertextos e ciberespaços, tece e retece ininter­ruptamente uma vasta, complexa e lucrativa rede sistêmica, na qual são situados e significados uns e outros, coisas, gentes e idéias, povoando continentes, ilhas e arquipélagos, por todo o mundo. (13)

Mas esse mundo sistêmico não está pronto, consolidado, cristali­zado. Ainda que muitos procurem defini-lo em termos evolucionistas, como o clímax da história, inclusive naturalizando-o, subsistem mul­tiplicidades, divergências, desigualdades, tensões e antagonismos entre agências, organizações, corporações e outras instituições do capitalismo globalizado. O mundo virtual também está atravessado por tensões e antagonismos, fissuras e estridências, inovações e obso­lescências. Ainda que a maioria dos seus dirigentes e beneficiários afirme e reafirme o fim da geografia, o fim da história, a formação da aldeia global e a primazia do pensamento neoliberal, não só subsistem como também multiplicam-se atritos, contradições e conflitos.

Simultaneamente, por dentro e por fora da sociedade informática, virtual e sideral, são muitos, muitíssimos, muitos mais, multidões, os que continuam situados, enraizados, territorializados, geoistóricos. Dedicam-se aos trabalhos e aos dias, podendo estar empregados ou desempregados, conscientes ou inconscientes, resignados ou desespe­rados. Para viver, precisam comer, beber, vestir-se, abrigar-se, mover­-se, reproduzir-se; desenvolvem meios e modos de organizar formas de sociabilidade, jogos de forças sociais; dedicam-se a pensar, sentir, compreender, explicar, fabular; empenham-se em juntar e desconjun­tar o passado e o presente, a biografia e a história, a parte e o todo, a aparência e a essência, o singular e o universal, a existência e a cons­ciência, o esclarecimento e a utopia.

O príncipe eletrônico pode ser visto como uma das mais notáveis criaturas da mídia, isto é, da indústria cultural. Trata-se de uma figu­ra que impregna amplamente a política, como teoria e prática. Impregna a atividade e o imaginário de indivíduos e coletividades, grupos e classes sociais, nações e nacionalidades, em todo o mundo.

Em diferentes gradações, conforme as peculiaridades institucionais e culturais da política em cada sociedade, o príncipe eletrônico influen­cia, subordina, transforma ou mesmo apaga partidos políticos, sindi­catos, movimentos sociais, correntes de opinião, Legislativo, Executi­vo e Judiciário. Permanente e ativo, situado e ubíquo, visível e invisí­vel, predomina em todas as esferas da política, adquirindo diferentes figuras e figurações, segundo a pompa e a circunstância.

A fortuna e a virtù, das quais falava Maquiavel, tornaram-se atri­butos do príncipe eletrônico. Uma parte fundamental da virtù de líde­r, governantes, partidos, sindicatos, movimentos sociais e correntes de opinião pública tem sido construída cada vez mais pela mídia, como uma poderosa e abrangente coleção de técnicas sociais. A comunicação, informação e propaganda podem transformar, da noite para o dia, um ilustre desconhecido em uma figura pública notável, literalmente ilustre, com perfil, programa, compromisso, senso da res­ponsabilidade pública, conhecimento dos problemas básicos da socie­dade e até mesmo com linguagem própria, diferente de outras, origi­nal. O marketing político, secundado por diferentes programas da mídia eletrônica e impressa, bem como pelos artifícios das técnicas de montagem, colagem, mixagem, bricolagem, desconstrução e simula­cro, pode realizar o milagre da criação. Pouco a pouco, muitos são levados a crer que essa pode ser a criatura indispensável para fazer face à fortuna, às condições político-econômicas e socioculturais res­ponsáveis pela questão social, pelas carências do povo, pelas reivindi­cações de indivíduos e coletividades, grupos e classes sociais. Em alguns casos, a criatura produzida pela mídia aparece como a única solução, para o indivíduo, povo, sociedade, país, Estado-Nação, região ou até mesmo o mundo como um todo. Desde que se satanizem maliciosa e impiedosamente os outros, líderes, dirigentes, partidos, sindicatos, movimentos sociais, correntes de opinião, setores sociais e outros, inclusive criminalizando amplos setores da sociedade civil, logo muitos, muitíssimos, multidões, serão induzidos a buscar a salva­ção. Sim, a metamorfose da crítica em satanização e da satanização em intimidação, medo e aflição logo provoca a reorganização e o redi­recionamento de expectativas e opiniões. Essa pode ser a estrada onde é tangida a multidão solitária no seio da qual o príncipe eletrônico constrói hegemonias e exerce soberanias.

O processo catártico, por meio do qual as inquietações, carências, frustrações, reivindicações e ambições de indivíduos e coletividades, grupos e classes sociais sintetizavam-se no príncipe e no moderno príncipe, agora passa a ser predominantemente um atributo do príncipe eletrônico. Uma parte fundamental do entendimento e des­cortino do moderno príncipe, assim e como do príncipe, passa a ser realizada pela mídia eletrônica e impressa, capaz de comunicação, informação e propaganda; combinando ênfase e gradação, impacto e esquecimento, linguagem e imagem, videoclipe e multimídia, tudo isso em um vasto espetáculo sem fim. Sim, o príncipe eletrônico é capaz de realizar a metamorfose de tudo o que pode ser social em urna síntese de tudo o que pode ser político; realizando, simultaneamente, a mágica de pasteurizar a política propriamente dita, como teoria e prática. Quando realizado pelo príncipe eletrônico, o processo catár­tico revela a política como uma esfera na qual se manifestam também desentendimentos, desencontros e inadequações, tanto quanto inten­ções, propostas e soluções; mas em geral uma esfera destituída de ten­sões e contradições, alimentadas por desigualdades e alienações.

O príncipe eletrônico é uma figura política nova e diferente de todas as outras, passadas e presentes. Convive com as outras, tanto o príncipe maquiavélico como o moderno príncipe gramsciano, sem esquecer as instituições clássicas da política, tais como os partidos políticos, os sindicatos, os movimentos sociais, as correntes de opi­nião pública, os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Revela-se simultaneamente diferente e original, tanto quanto surpreendente, fascinante e inquietante.

Um dos segredos do príncipe eletrônico é atuar diretamente no nível do virtual. Beneficia-se amplamente das tecnologias e linguagens que a mídia mobiliza para realizar e desenvolver cotidianamente a virtualização. Tudo o que é social, econômico, político e cultural, com­preendendo as diversidades e desigualdades de gênero, étnicas, religiosas, linguísticas e outras pode ser taquigrafado, traduzido e decantado em signos, símbolos e emblemas, ou figuras e figurações, que as linguagens da mídia elaboram e desenvolvem. Essa vasta, complexa e ininterrupta atividade mobiliza a montagem, colagem, mixagem, bricolagem, desconstrução, simulacro e pastiche, entre outras linguagens da pós-modernidade. A notícia, o comentário, a fotografia, o documentário, a palavra, a imagem, o som, a cor, a forma, o movimento, o ângulo, o close-up, a panorâmica, o impacto, o espetacular, o terrificante e outros recursos narrativos permitem tanto registrar e divulgar como enfatizar e esquecer, ou relembrar e enervar. Em todos os casos, trata-se de taquigrafias, traduções, exorcismos, sublimações ou estetizações da realidade, experiência ou existência. Daí a emergência de outras e novas, diferentes e surpreendentes, formas de consciência, envolvendo outras condições e possibilidades de entendimento, escla­recimento, imaginação, mitificação. Há todo um imenso e intrincado universo de signos, símbolos e emblemas, compreendendo figuras e figurações; universo por meio do qual a mídia decanta o real, o acon­tecer, o devir e outras modulações da realidade, transformando-os em manifestações espúrias do virtual.

Está em curso, ao acaso ou deliberadamente, um surpreendente, fundamental e inquietante processo de dissociação entre existência e consciência; ou condições e possibilidades da existência e condições e possibilidades da consciência. Quando se desenvolvem e se aplicam as tecnologias eletrônicas, informáticas e cibernéticas, agilizando e gene­ralizando os meios de comunicação, informação e propaganda, as condições e as possibilidades da consciência passam a descolocar-se contínua ou reiteradamente da experiência, realidade ou existência.

Simultaneamente à dissociação entre existência e consciência, desenvolvem-se outros, novos e muito diferentes significados do espa­ço e tempo, ser e devir, pensar e sentir, explicar e imaginar. Torna-se possível utilizar metáforas como as seguintes: mundo sem fronteiras, Terra-Pátria, aldeia global, fim da geografia, fim da história. Esse é o clima mental, isto é, virtual, em que se formulam expressões destina­das a taquigrafar aspectos desse mundo virtual: multimídia, interface, internet, hipertexto, ciberespaço, desterritorialização, miniaturização, mundialização, globalização, planetarização.

Nesse mundo virtual, modificam-se as articulações e desarticula­ções estabelecidas pela modernidade acerca de dado e significado, parte e todo, passado e presente, história e memória, compreensão e explicação, singular e universal. Simultaneamente, modificam-se os contrapontos eu e outro, nós e outros, nacional e estrangeiro, ocidental e oriental. Quando se desenvolvem, agi­lizam e generalizam as aplicações das tecnologias eletrônicas, infor­máticas e cibernéticas, transformadas em técnicas sociais, redese­nham-se ou mesmo se dissolvem as linhas demarcatórias de territórios e fronteiras, formas de governo e regimes políticas, culturas e civiliza­ções. No âmbito do mundo virtual, as coisas, as gentes e as idéias, tan­to quanto as identidades, alteridades, diversidades e desigualdades, parecem mudar de figura e figuração. Como parecem descoladas da experiência, realidade ou existência, aparecem como fantasias do imaginário. Podem ser criações prosaicas ou originais, mais ou menos elaboradas com base na estética eletrônica, de tal modo que muitos, muitíssimos, multidões, são levados a visões do mundo destituídas de tensões e contradições.

Sim, o príncipe eletrônico pode ser visto como o intelectual orgâ­nico dos grupos, classes ou blocos de poder dominantes, em escala nacional e mundial. Em alguma medida, esses grupos, classes ou blo­cos de poder dispõem de influência mais ou menos decisiva nos meios de comunicação, informação e propaganda, isto é, na mídia eletrôni­ca e impressa, sempre funcionando também como indústria cultural.

É claro que o príncipe eletrônico não é harmonioso, homogêneo ou, muito menos, monolítico. Está sempre atravessado por divergên­cias, concorrências e influências. Além das suas disputas e competi­ções internas, refletem as solicitações e obstruções de setores sociais diversos, nos quais proliferam diferentes e contraditórias avaliações sobre a mídia, sem ter idéia da formação e atividade do príncipe ele­trônico. Há desacordos e acomodações, convergências e tensões, no âmbito da sociedade, suscitando o pluralismo e até mesmo quebran­do monolitismos.

Em linhas gerais, no entanto, o modo pelo qual se desenha e movimenta o príncipe eletrônico permite defini-lo como o intelectual orgânico dos grupos, classes ou blocos de poder dominantes em esca­la nacional e mundial. Um intelectual orgânico coletivo, já que sinte­tiza a atividade, o descortino e as formulações de várias categorias de intelectuais – jornalistas e sociólogos, locutores e atores, escritores e animadores, âncoras e debatedores, técnicos e engenheiros, psicólog­os e publicitários -, todos mobilizando tecnologias eletrônicas, informáticas e cibernéticas como técnicas sociais de alcance local, nacional, regional e mundial.

Essa é, em larga medida, a fábrica da hegemonia e da soberania, que teriam sido prerrogativas do príncipe de Maquiavel e do moderno príncipe de Gramsci. Agora é o príncipe eletrônico que detém a faculdade de trabalhar a virtù e a fortuna, a hegemonia e a soberania; ou o problema e a solução, a crise e a salvação, o exorcismo e a sublimação. Assim se instaura a imensa ágora eletrônica, na qual muitos navegam, naufragam ou flutuam, buscando salvar-se.

 Notas

(1) Maquiavel; O príncipe, trad. de Mario Celestino da Silva, 2ª ed., Vecchi, Rio de Janeiro, 1946, pp. 37,43, 156-157 e 160-161. Nesta edição encontram-se a notas de Napoleão e Cristina da Suécia.

(2) Antonio Gramsci, Maquiavel, A política e o estado moderno, trad. de Luiz Mario Gazzaneo, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1968, pp. 6,7, 8, 9 e 33.

(3) Hans Magnus Enzensberger, Detalles, trad. de N. Angochea Miller, Editorial Anagrama, Barcelona, 1969, pp. 7-10; cito de La manipulación industrial de las conciencias, pp. 7-17.

(4) Michael Gurevitch, The Globalization of Electronic Journalism, James Currau e Michael Gurevitch (orgs.), Mass Media and Society, Edward Arnold, Londrc , 1991, pp. 185 e 188.

(5) Rafael D. Pagan Jr., presidente da Nestlé Coordination Center for Nutrition, Porter la lutte sur le terrain des détracteurs du capitalisme multinational, em Vers un Dévèloppement Solidaire, no 66, Lausanne, maio de 1983; citado por Cynthia Schneider e Brian Wallis, Introduction em Cynthia Schneider e Brian Wallis, Global Television, Wedge Press, Nova York, 1988, pp. 30-31.

(6) Mark Wossner, Success and Responsabiliry, publicado em: Bertelsmann, Annual Report 1992/93, Gutersloh, s/d, pp. 4-7; cito da p. 4. Consultar também: Lyn Krieger Mytelka (org.), Strategic Partnership, Pinter Publishers, Londres; Le Monde Diplomatique, Medias et controle des esprits, Maniêre de Voir, no 27, Paris, 1995; Le Monde Diplomatique, Les Nouueaux maitres du monde, Maniêre de Voir, no 28, Paris, 1995; David C. Kerten, Quando as corporações regem o mundo, trad, de Anua Terzi Giova, Futura, São Paulo, 1996.

(7) Stefano Rodotà, Tecnopolitlca (La democrazia e le nuoue tecnologie della comu­nicazione), Editori Laterza, Roma-Bari, 1997, p. 12.

(8) Julian Stallabrass, Empowering Technology: The Exploration of Cyberspace, New Left Review, n~ 211, Londres, 1995, pp. 3-32; cito das pp. 4-5.

(9) Armand Martelart, Comunicação-mundo, trad. de Guilherme J. de Freitas Teixeira, Vozes, Perrópolis, 1994; Anthony Smith, La geopolitica de Ia Informa­ciôn, trad. de Juan José Utrilla, Fondo de Cultura Econômica, México, 1984.

(10) Karl Mannheim, Man and Society in an Age of Reconstruction, Roucledge & Kegan Paul, Londres, 1949, p. 247. Também: Norbert Elias, Technization and Civilization, Theory, Cultura & Society, vol. 12, n~ 3, Londres, 1995, pp. 742.

(11) M. Swabey, Theory of tbe Democratic State, Harvard University Press, Cambridge, 1939, pp. 129-130. Cito por Brian D. Loader (org.), The Gouernance of Cyberspace (Politics, Technology and Global Restructuring), Routledge, Londres, 1997, p. 173-174. Consultar também: Ben H. Bagdikian, O monopólio da midia, trad. de Maristela M. de Faria Ribeiro, Scrirta Editorial, São Paulo, 1993; Wilson Bryan Kay, A era da manipulação, trad. de Iara Biderman, Scritta Editorial, São Paulo, 1993; Denis de Moraes (org.), Globalização, mídia e cultura contemporânea, Letra Livre, Campo Grande, 1997, Eugenio Bucci, Brasil em tem­po de TV, Boitempo Editorial, São Paulo, 1996.

(12) Niklas Luhmann, The Word Sociery as a Social System, lntemational [oumal of Systems, vol. 8, 1982, pp. 131-138; Octavio Ianni, Teorias da globalização, 5a ed., Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1998, esp. capo IV: A interdependênia das nações.

(13) Sherry Turkle, Life on the Screen (Identity in the Age of the Internet), Weidenfeld & Nicolson, Londres, 1996; Manuel Castells, The lnformation Age: Economy, Society and Culture, 3 vols. Blackwell Publihsers, 1996·1998; Pierre Lévy, A inteligência coletiva (Por uma antropologia do ciberespaço), trad. de Luiz Paulo Rouanet, Edições Loyola, São Paulo, 1998; Adam SchaH, A sociedade informática, trad. de Carlos E. J. Machado e Luiz Arturo Obojes, Editora Unesp, São Paulo, 1990; Norbert Wiener, Cibernética e sociedade (O uso humano de seres humanos), trad. de José Paulo Paes, Cultrix, São Paulo, 1968.

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