Duas ou três coisas sobre o Google

PUBLICADO NA REVISTA ÉPOCA NEGÓCIOS DE JUNHO DE 2010 

O deslumbramento da mídia com a empresa mascara seu real negócio monopolista. A crise com a china só aumentou o fascínio

Caio Túlio Costa*

O mundo se ajoelha frente ao Google. O conglomerado que lhe dá forma conquistou em 12 anos de vida um deslumbramento geral. O fascínio se ampliou com o recente embate entre o Google e o governo chinês. Este embevecimento é mais fácil de ser percebido nos meios de comunicação, tanto na mídia clássica (televisões, jornais, revistas, rádios) quanto nos veículos da nova mídia (portais, sites, blogs, posts, comentários). Como o maniqueísmo faz parte do DNA da mídia, ambas, a clássica e a nova, trafegam numa via de mão dupla: santificam ou demonizam. No caso do Google, ele caminha para a canonização em vida.

O público internauta que manipula seu mecanismo de busca ou suas ferramentas de rede social tem com ele uma relação utilitária. Usa-o sem necessitar refletir acerca de seu valor como farejador de dados, documentos, pessoas, imagens, vídeos… Procurou, achou. As autoridades, democráticas ou autoritárias, têm o Google sob estrita vigilância, por conta dos problemas ligados às invasões de privacidade, pedofilia, pornografia, grupos de ódio, em especial no YouTube e no Orkut – e mais ainda no Brasil, onde este último ganhou sua maior popularidade.

Mas o Google não é apenas o que aparenta ser. Certa feita, questionado sobre os pilares que norteiam o concorrente Yahoo – busca, personalização, comunidade, informação – e indagado sobre os pilares do Google, o seu homem forte comercial, Omid Kodestani, saiu-se com essa: “Nós dizemos que organizamos a informação em rede mundial. Bobagem! Nós somos é uma empresa de publicidade!”

Caiu a ficha? Quando você entra no Google e digita a palavra “carro”, receberá uma página de resultados com várias indicações sobre carros. Atente: o primeiro resultado pode ser um “link patrocinado” em fundo colorido, um anúncio em forma de texto. Do lado direito da página vão aparecer outros anúncios empilhados, todos em forma de texto e que remetem a carros: novos e usados, lançamentos da indústria automobilística e pequenos reclames antes cativos da indústria de classificados. Se você quiser vender seu automóvel e se dispuser a pagar algum dinheirinho para o Google, o seu anúncio pode aparecer ali do lado direito da página.

Esta descrição é banal para quem conhece o mecanismo. O que não é banal é o ganho do Google com esses pequenos anúncios desde que passou a vender palavras-chave na sua busca, em 1999. De uma empresa nascida sem modelo de negócio, acabou catapultada à liderança do mercado de propaganda. Arrebentou com o mercado tradicional de anúncios e praticamente criou um monopólio na busca em rede. Utilizou para tanto uma extraordinária inteligência no uso da força de trabalho (gratuita!) dos internautas. Eles o ajudam a confeccionar o mais poderoso banco de dados do planeta.

A coisa funciona mais ou menos assim: ao pressionar em qualquer resultado de uma busca, o endereço clicado vai para um banco de dados. Assim, de clique em clique, a empresa vai formando uma lista de endereços e contabilizando automaticamente quem aparece mais, ou seja, qual tem mais relevância, quantas vezes e em quantas páginas existe aquele mesmo endereço, quantos links existem nas páginas da internet direcionam para ele. Relevância é a palavra, o coração do mecanismo. Quanto mais cliques, quanto mais links apontam para um endereço, mais este endereço tem importância e mais em cima ele vai aparecer nos resultados da busca – porque ele é mais relevante.

O que os meninos do Google (Sergey Brin e Larry Page) conseguiram conceber, e milhares de engenheiros contratados por eles conseguiram aperfeiçoar, foram os algoritmos capazes de revelar essa relevância e devolver resultados pertinentes. Isso é aprimorado a cada dia. Ao mesmo tempo, uma espécie de robô bate de porta em porta nos sites da rede e indexa no banco de dados do Google, formado por milhares de servidores, todas as palavras de todas as páginas abertas na rede. Simples?

Não. Até aqui, ninguém, nenhuma companhia que tenha investido em busca conseguiu algoritmos tão poderosos. Desde seu nascimento, o Google foi deixando para trás empresas como Excite, Lycos, AltaVista, Inktomi, AskJeeves, Overture (a criadora da busca paga), Yahoo e até o mais recente Bing (da Microsoft). Algumas dessas marcas soam hoje pré-históricas para quem conhece a internet desde o seu nascedouro comercial, nos idos de 1995. Nada dizem (exceto Yahoo e Bing) para a geração de agora e para quem o Google é o mais natural mecanismo de busca que se possa imaginar.

A empresa não ultrapassou apenas os competidores na indústria dos motores de busca. Também deixou para trás monumentos empresariais. Dá um trabalho danado para as agências de publicidade, tritura o mercado de classificados dos jornais (olhe como diminuiu o peso do seu jornal de domingo), destrói concorrentes na nova mídia, como a America Online, e supera de longe, em valor de mercado, tiranossauros da mídia clássica como a Time Warner, a Disney ou a News Corporation – para ficar em três das maiores empresas de mídia do planeta.

O Google faturou US$ 23,6 bilhões de dólares no ano passado. Há expectativas, reforçadas por analistas de mercado, de ir além de US$ 36 bilhões em 2012. Cerca de 50% desse faturamento vêm dos pequenos anúncios, dos internautas que compram palavras-chave. 15% vêm da venda direta do Google, por telefone, junto às pequenas e médias empresas. 35% vêm dos grandes anunciantes (só aqui existe uma parte de anunciantes intermediados por agências de publicidade). A esmagadora maioria dos seus anúncios é vendida diretamente, sem intermediação. Ele é ao mesmo tempo o veículo e a agência. Percebe-se fácil o quanto de descontentamento isso deve gerar no mercado de agências de publicidade.

Comparado à Amazon, ao eBay e ao iTunes, o Google é quem melhor tira proveito da cauda longa, aquele fenômeno no qual se vendem muitos produtos de baixa procura porque estão agrupados num mesmo local e este local consegue arrebanhar compradores para tudo. Esses produtos teriam pouca venda se não existisse a comercialização em rede cuja escala a digitalização facilita.

O Google comercializa anúncios digitais em forma de texto. Vende-os tanto para grandes empresas que podem lhe pagar contratos anuais de milhões de dólares quanto para um blogueiro que pode lhe pagar míseros US$ 250 num único mês. Com isso, desbaratou a indústria tradicional de classificados e dá trabalho para a indústria da propaganda.

Compare o faturamento do Google, sempre crescente, com o faturamento das empresas de publicidade. Um dos maiores grupos desta indústria, o Omnicom, perdeu 12% de seu faturamento no último ano. Caiu de US$ 13,3 bilhões em 2008 para US$ 11,7 bilhões em 2009. Ou seja, um grupo solidamente estabelecido, composto de empresas, como a BBDO, fundada em 1928, fatura menos da metade do que o Google conseguiu em 12 anos. O grupo WPP, outro gigante, conseguiu aumentar seu faturamento em apenas 2,7% em 2009. O Google abriu 2010 crescendo em 24% sua receita trimestral contra o primeiro trimestre de 2009.

No caso das empresas de comunicação, compare a receita do Google com a da Time Warner, maior empresa de mídia do planeta em receita e ativos. Ela faturou US$ 44 bilhões em 2009, quase o dobro do Google. Mas o valor de mercado da Time Warner é de US$ 33 bilhões. Atenção: isto é cinco vezes menor do que o valor de mercado do Google: US$ 167 bilhões! Um ícone da velha mídia tem valor de mercado menor do que o seu faturamento. O ícone da nova mídia multiplica por sete o seu faturamento quando se fala no valor da empresa.

Portanto há razões de sobra para o embevecimento em relação ao Google. O auge da carência de criticidade em relação à companhia se deu com a recente crise com a China. Aos fatos.

Em 2002, o Google não tinha representação na China, estava na web, normalmente. Foi quando a China, no dia 4 de setembro, bloqueou o acesso ao Google pela primeira vez. Não houve anúncio oficial nem nada. Os internautas chineses ficaram duas semanas sem conseguir usar o google.com. As autoridades já estavam trabalhando no Grande Firewall da China, o equivalente da Muralha da China para a internet. Um mecanismo capaz de bloquear qualquer endereço na internet doméstica.

Em novembro de 2003, as autoridades chinesas lançaram o mecanismo e conseguiram eficiência no bloqueio dos conteúdos proibidos. Esta ferramenta estreou com a ajuda de uma força-tarefa de 30 mil policiais que passava dia e noite pesquisando e analisando todo o conteúdo na rede de cunho antigovernamental. Ou seja, os programas de busca não eram censurados, eram usados para encontrar material “subversivo”. Em decorrência, aí sim com a ajuda do Grande Firewall, bloquearam os sites que apareciam nos resultados e exibiam conteúdo “suspeito”.

Isto posto, e muito bem entendido, o Google deflagrou a sua estratégia para conquistar o maior mercado de internet do mundo. A China tem hoje 385 milhões de internautas, nada se compara a isso. Assim, em 16 de junho de 2004, o Google adquiriu participação minoritária na Baidu, o motor de busca líder em língua chinesa, sua cópia escancarada. Em setembro, o Google News não conseguiu fazer com que sites “problemáticos” do interior do país aparecessem nos seus resultados. O Google justificou a falha como “problema técnico”. Analistas de mercado não acreditaram. O Google teria se submetido à pressão de Pequim e se deixado censurar.

Em 25 de janeiro de 2006, a empresa lançou a versão em chinês de sua busca, google.cn. O mecanismo nasceu censurado, conforme determinações do governo chinês. Ou seja, para conquistar mercado, o Google aceitou a censura. Enfrentou, pela primeira vez, protestos em frente à sua sede, viu-se acusado de colaborar com um “regime nazista”. Um mês depois, foi criticado no Congresso americano por ceder às pressões da China. A empresa vendeu então sua participação no Baidu, mas seguiu firme com o plano de dominar o mercado chinês.

No entanto, em 2007, um ano após o lançamento da versão chinesa censurada, o Google não conseguiu obter boa posição e nem conseguiu reproduzir a mesma velocidade com que foi conquistando grandes fatias de mercado no ocidente. Conseguiu apenas 19% de participação contra 63% do Baidu. Então decidiu investir em outras companhias no país. Começou a trabalhar com China Mobile, a empresa estatal de telecomunicações, para oferecer conteúdo para telefones celulares.

Em janeiro de 2009, o Google e mais 18 empresas foram criticadas pelo governo chinês por não se esforçarem o suficiente para barrar pornografia na rede. Dois meses depois, em 24 de março, as autoridades bloquearam o acesso ao YouTube porque o site exibiu vídeo no qual a polícia chinesa batia em manifestantes no Tibete. O bloqueio durou quatro dias. No dia 19 de junho de 2009, as autoridades mandaram desativar algumas funções de busca no google.cn. A desculpa era que elas levavam a conteúdo pornográfico e ofensivo. Além disso, o serviço de e-mail do Google, o Gmail, permaneceu inacessível por mais de uma hora.

Em julho de 2009, o Google conseguiu exibir uma pequena vitória. Elevou sua participação no mercado de busca doméstico chinês a 30%, mas ainda metade dos 60% do líder Baidu. Na mesma época, teria sofrido ataques vindos da China, mas sem revelá-los.

A situação se deteriorou rapidamente. Em 12 de janeiro de 2010, o Google tomou coragem e anunciou ter sido vítima de um ataque cibernético “altamente sofisticado e direcionado”, originário da China. O ataque visava contas de e-mail de chineses defensores dos direitos humanos. O Google anunciou “revisão” de suas operações no país, e disse “não estar mais disposto” a continuar a censurar os seus resultados. Sugeriu que isso poderia significar o fim de seus negócios no país. O governo chinês respondeu que a alegação era “infundada”.

Em 4 de fevereiro, três semanas após o grave anúncio, o Google anunciou ter feito “zero mudanças” na busca chinesa e que estariam sendo positivas suas discussões com Pequim. Em 12 de março, Li Yizhong, ministro da indústria e tecnologia da informação, disse que o Google estaria sendo “hostil e irresponsável”. Após dois meses de negociações, os chineses deixaram escapar a notícia de que o google.cn poderia ser fechado.

Em 22 de março, o Google anunciou ter transferido suas operações de Pequim para Hong-Kong, onde não se aplicariam as regras de censura. Nascia naquele momento o grande defensor da liberdade de expressão. Manifestações do governo americano exibiram-no como “exemplo para empresas e governos”. Hillary Clinton, secretária de Estado, declarou: “Esperamos que as autoridades chinesas revejam sua posição sobre as intrusões que levaram o Google a tomar a atitude que tomou”.

Timothy Garton Ash, cientista político e professor de Oxford, resumiu o sentimento esparramado na velha e na nova mídia: “A batalha do Google contra a China é uma história que define nossa época”. Falou da oposição entre um leão e um crocodilo: “o poder brando do Google contra o duro poder territorial do estado chinês”.

Nada indica que as razões do Google sejam tão moralmente defensáveis quanto parece. Para adentrar o mercado chinês, repare bem, o Google aceitou proativamente as imposições autoritárias de Pequim. Aceitou e se calou. Sua disposição para a briga cresceu na exata proporção em que sua participação de mercado não cresceu como ele queria. Imaginava conseguir capturar o poderio do Baidu, dominar o mercado como consegue fazer onde está – com exceção do Japão, onde o Yahoo é o líder, em parceria com o japonês SoftBank.

Nos derradeiros seis meses nos quais ainda estava baseado em Pequim, o Google vinha mostrando dificuldade em crescer. Conforme as estatísticas visíveis no Alexa, um mecanismo do próprio Google que monitora a audiência mundial na internet, o Google conseguiu crescer 48% contra 53% do Baidu. Parece muito, mas ele não conseguia “comer” a participação do Baidu. Crescia em cima dos outros concorrentes como Yahoo China, Sogou, Zhong Sou, SoSo ou NetEase Yudao. Em pouco tempo estagnaria.

As receitas totais de busca na China (conforme projeção possível a partir de dados trimestrais de do primeiro semestre de 2009 divulgados no site especializado eMarketer), podem ter alcançado algo equivalente a US$ 1,3 bilhão no último ano. O Baidu abocanhou 60% disso (US$ 771 milhões) e o Google US$ 385 milhões – e isso é pouco num mercado daquele porte.

Ou seja, não se pode desconectar a retirada da China da questão econômica. A maior empresa de publicidade do mundo abre mão de seus compromissos éticos e tolera a censura quando interessa abocanhar um mercado gigante. Não é detalhe: durante quatro anos o Google aceitou a censura, caladinho. Baixou a cabeça para tentar fazer o negócio dar certo. Não deu. Então convoquem a liberdade de expressão. Comigo não, violão!

*Caio Túlio Costa é jornalista, professor de jornalismo e consultor de novas mídias.

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