A montanha que fuma

O Monte Fitz Roy e a "fumaça" que parece sair dele

O Monte Fitz Roy e a "fumaça" que parece sair dele

O jornalista Caio Túlio Costa relembra a última cavalgada ao Monte Fitz Roy, o mais alto pico nevado da Patagônia. O passeio ao coração do Parque Nacional Los Glaciares, na Argentina, hoje só é feito a pé.

Caio Tulio Costa (texto e foto)

Estávamos nos primeiros dias de 2004, recém-chegados a El Chaltén desde El Calafate, a maior cidade daquelas plagas argentinas. Viemos numa pequena van de pára-brisa machucado pelos pedregulhos voadores da larga estrada de cascalho. Foram quatro horas bordejando o Lago Viedma, viagem interrompida para comer delicadas “tortillas” no “parador” La Leona, único breque no meio do caminho, nos limites do Bosque Petrificado de mesmo nome, denominação obtida por conta da bela e valente leoa (uma fêmea de puma, o leão das Américas) que por lá deixou rastros de destruição e mortes.

Alguns dias antes havíamos remado caiaques no lago do Parque Nacional da Terra do Fogo, cruzado o Canal de Beagle no barco Barracuda, visto focas às pencas, pingüins aos magotes, trufas e mais trufas, nos empanturrado de carneiro e comemorado o réveillon em um restaurante argentino cuja festa acabou em carnaval. Também havíamos caminhado com crampões sobre o glacial Perito Moreno. Pisamos em sua brancura única ouvindo os trovões ensurdecedores, estrondos do gelo quando se desprega das paredes seculares da geleira para se liquefazer e, assim, formar o canal Los Tempranos, um dos braços do Lago Argentino – a terra se derretendo diante de nossos olhos.

Um dia antes de chegar a El Chaltén, exploramos as montanhas em torno de El Calafate a bordo de jipes 4×4. Desde quase mil metros de altitude pudemos ver a imponência das agulhas de pedra que se destacavam ao fundo, mais de 220 quilômetros ao norte.

Agora estávamos naquele norte e acredito ter sido aquela uma das últimas vezes que se pôde ir a cavalo de El Chaltén até a base do pico Fitz Roy, a maior entre todas as agulhas de pedra da região. As autoridades argentinas que cuidam do Parque Nacional Los Glaciares proibiram cavalgadas logo depois. Mas nós iríamos montar os legendários “criollos”, descendentes de cavalos árabes e andaluzes, trazidos à América pelos espanhóis, criados pelos índios, usados tanto por conquistadores para dominar quanto por gaúchos em busca de liberdade. Subiríamos uma vereda mágica dos Andes no lombo macio da histórica cavalgadura dos pampas. Hoje, o mesmo caminho só se faz a pé.

Chegamos a El Chaltén, 200 habitantes, vilarejo recheado de pousadas e hotéis dedicados aos amantes do trekking. De manhãzinha, pegamos a “avenida” San Martin em direção às cocheiras. O frio do verão andino era perfeitamente suportável. A escolha dos cavalos foi uma pequena festa. Independentemente da qualidade da marcha, a preferência ficou na base do “eu quero o maior”, “eu quero o marrom”, “não quero o mais claro”.

Éramos duas famílias: dois casais, quatro adolescentes e um molequinho de três anos. Um guia ia à frente para garantir a direção na trilha que sobe 345 metros serpenteando a vegetação, os bosques e as pedras até o acampamento Rio Blanco. Dali se sairia para ganhar a pé a subida oblíqua, duzentos metros mais acima, até o sopé do Fitz Roy – de onde se pode assomar o pico de 3,4 mil metros, escalada vertical, difícil, complexa, heróica.

Começamos a percorrer a trilha que sai do ponto mais ao norte de El Chatén, em fila indiana, vagarosamente, em frente, sempre em frente. O monte Fitz Roy, “la torre”, o granito maciço que se ergue soberano surge ao fundo depois da primeira curva, some na dobrada seguinte, e então fica mais perto, assustador. Com uma hora de cavalgada, seu perfil está bem definido e ainda mais misterioso. Percebemos então nitidamente que as nuvens “saem” do seu cume.

As evidências de aborígenes na região de El Chaltén são poucas. A mitologia tehuelche (os índios da Patagônia), no entanto, conta que o jovem Elal, fugindo da ira de seu pai, chegou ao topo da torre no dorso de um cisne. Levou quatro dias para descer a pé, quando foi atacado pelos espíritos da neve e do frio. Afugentou-os com o fogo que sabia fazer golpeando as pedras. No pé da montanha, encontrou hospitaleiros tehuelches, com os quais conviveu até se tornar um homem. Em gratidão, ensinou-lhes o uso do arco-e-flecha e a forma de acender o fogo – um Prometeu patagônico. Desde então, o pico se chamou Chaltén ou “montanha que fuma”. E o monte foi considerado sagrado pelos tehuelches. Na realidade, o efeito é produzido pelo vento ao empurrar as nuvens contra o paredão.

Muito tempo depois, quando o homem ocidental desbravou a região, é que ele virou o Monte Fitz Roy, nome dado pelo perito Francisco Moreno – que também virou nome do glacial Perito Moreno. O perito renomeou a montanha fumante em 1877 em homenagem ao capitão Robert Fitz Roy, que comandou o navio Beagle na famosa viagem de Charles Darwin em 1834. Considerado um dos mais difíceis montes para escalada, foi conquistado pela primeira vez em 1952, quando os alpinistas franceses Lionel Terray e Guido Magnone chegaram ao seu topo.

Depois de quase três horas de jornada pela estreitíssima trilha de onde se via todo o vale do parque nacional, chegamos finalmente ao acampamento Rio Blanco. O riacho que lhe dá o nome foi cruzado a cavalo, a água nos tornozelos dos ginetes. Uma cabana de madeira, tosca, serviu de proteção contra o vento enquanto degustamos sanduíches, maçãs e sucos do kit de alimentação providenciado pelo guia.

Os meninos foram atrás de um condor – e o viram pousar. As meninas desceram para olhar o riacho e passear por perto. A mãe, Lilian, ficou com o pequeno João. Os três destemidos Bell, Caio (eu mesmo) e Leão (o mais cobiçado dos leões humanos que passou por La Leona e lá queria ficar “en el invierno para escribir dos libros”; outro mistério, nunca se soube por que “dois” livros…), deram início à jornada morro acima munidos de gorro, óculos, sapatos reforçados, luva, stick na mão – o grau de dificuldade era razoável diante das rochas, pedras e calhaus da subida íngreme.

Foram uns 60 minutos para galgar a base do bloco granítico. Um lago glacial se formara lá em cima por conta da neve derretida, exatamente aonde chegamos. Paramos para tomar água e olhar o mundo – a vista deslumbrante, indescritível. E sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar, já disse o filósofo. Nossa intenção era modesta, apenas a de sorver a paisagem andina sem aventuras pedra acima. Chegar ao sopé do Fitz Roy fora por si só um feito notável.

As famílias esperavam lá embaixo, a postos para mais uma cavalgada até o Lago Capri, onde passaríamos a noite acampados. Churrasco, macarrão e vinho barato estavam à espera, além de um bom champagne submerso pelos pais e “pescado” pelos jovens nas águas geladas do Capri. No dia seguinte, a cavalgada iria até o Lago Torre, e de lá voltaria a El Chaltén, sempre no dorso dos “criollos”, sempre acompanhando ao vivo o derretimento da Terra.

Publicado na revista Audi Magazine de abril de 2009

Compartilhar