Caetano Veloso: O cinema parado

Capa do único filme de Caetano Veloso

Capa do único filme de Caetano Veloso

Publicado na Folha de S. Paulo em 7/12/86

Tem razão Caetano Veloso quando escreve que o seu O Cinema Falado não é um filme, mas um “ensaio de ensaios de filmes possíveis para mim e para outros”. Aquilo que vai estrear nesta quinta-feira [11/12/86] no Belas Artes e teve sua pré-estréia na noite de sexta no cine Metrópole não passa de um filminho doméstico realizado com a participação da família e dos amigos e que deve ser muito gozado e profundo. Mas só para os amigos do diretor estreante.

Caetano tem razão também em ficar apreensivo com a reação das pessoas ao verem o filme. Ele é um pavão. Até um pavão ele filmou. Mas não há nada de extraordinário em um cantor de rádio fazer filmes, mesmo quando esse cantor é o pavão Caetano. Nem polêmico o filme é. Não há o que polemizar depois de duas tediosas horas de citações literárias. Do resultado final sobram apenas os créditos iniciais, feitos pelo artista plástico Luciano Figueiredo, com letras coloridas dando a impressão de imagem em terceira dimensão, e a atuação de Regina Casé com uma blague hilariante a partir de uma entrevista de Fidel Castro à televisão.

Caetano colocou na tela uma seqüência completamente desconexa de citações, danças, diálogos, aviões, igrejas, sambistas, a mãe, a ex-mulher, a atual mulher, o irmão, cavalos, Schoenberg, guitarras, pinto, seio, beijo, o seu guru do cinema, escritores, poetas e uma bailarina “afro” sujando-se de terra. Pequeno trailer: Amor ao amor, o princípio da beleza não está na esfera da vida, organismo/orgasmo, a diversidade da vida da cidade, gelatina espatifada: a vida urbana burguesa, sexo explícito, Sartre e Simone de Beauvoir, comentários não são literatura (em inglês), Dr. Campbell, o Brasil vai ser o primeiro do século 21, eu vou pra guerra, não vou morrer, reforma agrária, agricultura, bunda do Fidel, o modo tradicional da TV Globo atuar, meninos assaltantes, favelas, humilhação. Tudo isso emoldurado por diálogos ou monólogos solenes. O Brasil não deixa mesmo em paz o cadáver de Glauber.

Se ao espectador interessa o que vai pela cabeça de Caetano é decepcionante saber que ela é composta de uma gelatinosa salada de posições culturais e situações pouco inteligíveis. É certo que no mundinho pequeno da cultura brasileira cada momento do filme pode dar pano pra manga nas conversas de bar. Mas nem em termos de linguagem nem de apresentação Caetano se abre. São imagens estanques com repetição de “máximas” estanques. No seu almanaque familiar ele mostra uma comovente cena de sua mãe, Dona Canô, entoando “Último Desejo” de Noel Rosa. Dá muito mais mais tempo para sua ex-mulher, Dedé Veloso, do que para sua atual mulher, Paula Lavigne, porque Dedé manda mais. Dedé dialoga, é a cabeça em ação. Paula está na cama, sensual, parodiando a menina de O exorcista: “Fuck me, fuck me”, naquele mesmo som gutural. Seu irmão Rodrigo dança embandeirado ao som de “Águas de março” e o filho Moreno aparece de brinco e boné. Fora da área familiar, por exemplo, Dadi, ex-baixista de A Cor do Som, explica porque os Beatles eram fúteis e Bob Dylan era profundo, mas apesar disso são os maiores em música. O tradutor Paulo Cesar Souza recita em alemão um texto crítico de Thomas Mann. Com legendas. O ator Hamilton Vaz Pereira desanca com um trecho enorme e maçante do Grande Sertão de Guimarães Rosa tendo como ouvinte apenas um rapaz de olhos iluminados. Tudo cai como máxima a ser deglutida (e não digerida). O resto é recordação familiar.

O filme requer explicações. Daí o esforço de Caetano em tornar públicas suas motivações, o porquê de cada “situação”. Mas obra de arte que precisa ser explicada para ser entendida não pode ser levada a sério. O cineasta Caetano optou por uma filmagem em tempo recorde (21 dias) com imagens de um plano só, câmara parada. Fez cinema parado. O filme não é chato, é ruim mesmo.

P.S. de 2009: Caetano Veloso nunca perdoou esta crítica. Reclamou dela, em público, no primeiro show que deu em São Paulo depois do lançamento de Cinema Falado. Voltou ao assunto em várias ocasiões, sempre enraivecido. Dezessete anos depois, em 2003, quando foi lançado o DVD do filme, ele gastou dois minutos e meio para atacar de novo a crítica na “entrevista com o diretor”, parte do DVD. Nela, repete os sentimentos em relação à crítica e ao seu autor. Leia o que ele diz a propósito da recepção do filme:

“Com a recepção não fiquei satisfeito. Fiquei, como é que eu posso dizer… entrei em conflito com a recepção. Tive muitos problemas. Foi muito sofrido, muito difícil. Eu não tenho muito problema de não aceitação ou de não aprovação do que eu faço, entendeu? Em geral. Eu sou muito vacinado nisso. (…) Levo porrada o tempo todo através dos anos, embora tenha com tudo isso me estabelecido como um medalhão da música popular do Brasil. Então não tenho do que reclamar. Mas, no caso do filme, eu sofri muito. E vou lhe dizer por que. Porque pra fazer o filme eu engajei uma porção de gente a quem eu quero muito bem. E uma gente que se expõe no filme. (…) Então, quando eu lia no jornal aquelas coisas agressivas e eu ouvia o Arthur Omar xingando, gritando dentro do cinema, e essas pessoas todas presentes na sala, eu me senti muito mal e depois me senti mal ainda com coisas que vi no jornal. Um artigo de um sujeito chamado Caio Túlio, um sujeito intolerável que escrevia na Folha de S. Paulo. Aquele sujeito deve ser um invejoso, doentio, porque quando o Chico Buarque publicou o primeiro romance ele fez a mesma coisa. Tem muita gente que tem problema assim com a gente de música popular, porque a gente é foda. Não tem outra explicação. Para um cara fazer o que fez com meu filme e fazer o que fez com o livro do Chico… É diagnóstico definitivo, problema, porque a gente é foda. Chico Buarque é foda. Eu sou foda. A verdade é essa. Milton Nascimento é foda. Gilberto Gil é foda. Djavan é foda. A verdade é essa. E acho que aquele cara escrever… Você vê que eu fico com raiva ainda hoje. O que ele escreveu… falava das mulheres, botando nomes das minhas mulheres, agredindo as pessoas, chamando pau de pinto na Folha de S. Paulo. Um imbecil, um sujeito grosseiro, cafona. Isso me magoou muito. Porque as pessoas todas que estavam envolvidas no filme sentiram aquela tristeza. (…) Eu senti que todas tinham sido levadas para uma situação um tanto desagradável por minha causa, eu achei que eu… Me senti mal. Me arrependi de ter feito o filme. Me desanimei de fazer um outro.”

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