Ferramenta para o entendimento

Prefácio ao livro Conectado: o que a internet fez com você e o que você pode fazer, de Juliano Spyer (Zahar, 2007). Lançado em 06/09/2007.

Caio Túlio Costa

Usei uma conexão via computador, pela primeira vez, em 1988. Morava na França, trabalhando como correspondente da Folha de S.Paulo e concordei em utilizar um laptop Toshiba T1000, equipado com um modem de 1.200 bauds, para transmitir minhas reportagens. Nem queira saber que tartaruga era esse modem, muito anterior aos de 9K ou de 14K. Pois eu o usava para chamar um número especial da Infonet, uma das pouquíssimas empresas do mundo, naquele momento, capaz de conectar meu computador com o servidor do jornal – e fazia a mais moderna conexão que alguém poderia imaginar!

O texto entrava direto nos terminais da redação, digitalizado, segundos depois de composto na tela de cristal líquido do pequeno Toshiba. O laptop sequer tinha disco rígido, era tudo comandado por disquete e gravado em disquete. Permitiu-me aposentar não só a Olivetti como o vetusto telex de casa. A máquina de teletipo acendia e apitava sempre que o jornal transmitia as pautas e fazia o mesmo barulho quando eu remetia meus textos. Eles viajavam sem acentos, todos compostos em letras maiúsculas, a letra A dobrada fazendo as vezes da crase, a palavra “end” no fi nal para sinalizar que o texto acabara – era uma locomotiva a vapor perto do rapidíssimo trem elétrico que parecia aquele laptop.

Em seguida, eu pegava o telefone e chamava a redação para saber se o texto “entrara” bem. Até que um dia o engenheiro de informática do jornal me disse que dali em diante não precisaríamos usar mais a ligação telefônica internacional tradicional, muito cara, para saber se o texto havia chegado corretamente ou tirar dúvidas sobre o manuseio do computador. Poderíamos fazer aquilo via “chat”, uma conversa textual na tela do próprio laptop. Essa maravilha seria possível por meio de um programinha de conversação. Precisava do disquete, claro, enviado pelo correio. Era só inserir o disquete, ligar a máquina e tudo daria certo, pois o laptop ainda não era moderno o suficiente para receber o programa pela conexão discada. O disquete chegou, inseri-o no devido “slot” e “rebutei” o Toshiba. Deu certo. Foi meu primeiro chat.

Logo depois me tornei assinante da Compuserve, a companhia que inventou o próprio chat via computador, engolida depois pela America Online. Na França, nos anos 1980, eu já era um usuário assíduo do Minitel, uma espécie de vovô da internet, onde colhia informações, comprava passagens de trem, consultava horários de cinema… Compuserve, Minitel, Toshiba, placa de modem: estava cada dia mais dependente do computador.

Seja por essa dependência, ou pelo fato de ter sido responsável pela informatização da redação do jornal em 1984, a Folha me convocou, em 1995, para arquitetar o projeto de um serviço online. Essa história não importa aqui, mas sim o meu espanto quando percebi ser possível trocar dados (a conversa por textos) via computador e o quanto essa facilidade melhorou a vida do correspondente internacional.

Talvez essa prática tenha colaborado com a minha teimosia em não lançar o Universo Online enquanto o sistema de bate-papo não estivesse pronto. Tanto fizemos que o bate-papo ficou redondo e o serviço estreou na madrugada de 29 de abril de 1996. Sucesso absoluto! Cada pessoa que entrava em uma das salas do chat recebia uma salva de palmas na pequena salinha, onde acompanhávamos os ambientes de chat conectados então por um “velocíssimo” modem de 33,6K. Exibíamos como troféus as poucas salas com os poucos internautas escondidos por apelidos (nicknames), todos trocando conversa sobre tudo e nada. Como as pessoas gostaram daquilo!

Costumo criticar prefácios nos quais o prefaciador fala mais de si do que do livro. Peguei-me agora cometendo o mesmo crime de lesa-majestade que abomino. Faz sentido aqui porque Juliano Spyer entendeu a importância real de um serviço online ser lançado com um canal de chat e cita isso quando fala das ferramentas sociais. Ele mesmo revelou-me: “Experimentei com a sala de bate-papo do UOL a possibilidade de milhares de pessoas conversarem animadamente entre si. A internet me deu um rumo.”

Essa possibilidade interativa, imanente à interconexão em rede, que existe desde o início da internet, com o advento do e-mail, e tornada simultânea com o chat, está no princípio do que se convencionou chamar Web 2.0, expressão que Juliano evita neste livro – mas que, no fundo, o determina; é sua razão de ser. O autor é o primeiro a explicar, de forma cristalina, o quanto os provedores não deram importância, logo no início da internet comercial, em meados dos anos 1990, a uma plataforma que era muito mais do que a possibilidade de colocar duas pessoas falando, em tempo real, a respeito de qualquer assunto. Não souberam ir além da mera troca de conversa, coisa que só ganhou corpo praticamente dez anos depois do advento da internet e lendo o livro você vai entender por que.

Juliano é daqueles historiadores que escrevem bem, o texto flui, a leitura anda confortavelmente mesmo espargindo siglas, neologismos e termos em inglês – cuja maioria ele se esforça em explicar, em traduzir. Poucas vezes vi em bom português tanta informação e tanta capacidade de argumentação como em Conectado. Há aqui uma enorme capacidade de agrupar informação de qualidade, analisar os fenômenos, explicar as técnicas e universalizar as experiências.

Juliano era criança quando minha geração entrava na faculdade e enfrentava a dura realidade de um país dominado pelos militares. Eles controlavam a informática e criaram uma reserva de mercado que só seria quebrada quase duas décadas depois, mas que reduziu demais nossa capacidade de pesquisa e desenvolvimento na indústria de ponta da informática. O país ainda sofre com isso, mas paradoxalmente conseguiu ter uma realidade de internet que o coloca em destaque em relação ao tempo de navegação em todo o mundo. Juliano faz jus a isso.

Nascido em 1971 em São Paulo, ele foi morar com os pais na Argentina e se alfabetizou em espanhol. Adolescente, fez intercâmbio em Bethalto, Illinois. Concluiu o curso colegial nos Estados Unidos. Humanista, estudou História na USP e especializou-se em história oral. Depois de formado, deu aula no cursinho e no colégio Objetivo. Ao mesmo tempo, produzia o programa radiofônico de música étnica Planeta Som para a Rádio USP. Voltou a morar nos EUA – seu pai foi implantar um canal de comunicação latino-americano para a CBS em Miami – e, em 1997, acabou contratado pela StarMedia como editor do site em português da empresa que pretendia ser a líder da internet da América Latina. Foi transferido para Nova York para cuidar do projeto StarMedia Eventos, o canal de bate-papo com convidados de toda a América Latina. Poderia ter ganhado bastante dinheiro se tivesse vendido as ações que adquiria mensalmente da StarMedia, mas “micou” com elas na mão com o estouro da bolha que levou muita gente à bancarrota no começo do século. Em 2001, recebeu uma proposta para ser o gerente de comunidades da America Online, de onde saiu em 2003, dois anos antes de ela se acabar no Brasil. Foi convidado para desenvolver  o projeto Leia Livro, da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, onde cuida do site e do programa de rádio distribuído nacionalmente para emissoras comerciais, educativas e públicas – o projeto é financiado com recursos do governo do estado. Além disso, cuida do projeto Viva São Paulo, um empreendimento particular que vai ao ar na paulistana Rádio Eldorado. Grava boletins feitos a partir de relatos publicados no site do projeto, o www.vivasp.com.

Iniciou a pesquisa sobre mídia social com o intuito de produzir um livro no final de 2005. Quando começou a escrever, não sabia onde aquilo iria dar. Queria encerrar o ciclo iniciado em dezembro de 1997, quando, contratado pela StarMedia e, de passagem pelo escritório da empresa no Brasil, viu em pleno trabalho a equipe de chat com convidados. Lembra-se de ter acompanhado o bate-papo com um cantor sertanejo, totalmente desconhecido da classe média culta, da qual faz parte. Ficou impressionado com a pertinência das perguntas e dos comentários postados pelas pessoas que realmente acompanhavam a carreira do convidado. Aquilo mostrou-lhe um caminho a seguir, viu sentido num espaço virtual para a comunicação entre grupos de pessoas. Trabalhando exatamente como gerente de comunidades da AOL, em Porto Rico, fazia reflexões metafísicas. “O que é isso que eu faço? Como é o nome dessa profi ssão? Qual é a relação dela com o jornalismo e em que ela se diferencia?” Ele se perguntava, e a sensação era de tatear no escuro.

O livro nasce dessa necessidade de respostas e desse olhar para o passado, de sua experiência pessoal e profi ssional desde um encontro revelador com um totem de Videotexto no shopping Eldorado, em São Paulo, no começo da década de 1980 – seu primeiro encontro com a comunicação em rede. Registrou por escrito a memória desses oito anos de vida e trabalho. Viu que tinha então uma história. Sentiu a necessidade de explicar de maneira mais técnica no que consistia esse trabalho. Descreveu sua rotina, a convivência como produtor de canais, o relacionamento com arquitetos, programadores e o pessoal de negócios. Depois decidiu, porque fazia total sentido, apresentar as ferramentas de chat, de fórum, de criação compartilhada de conteúdos (wiki) e todas as outras que você verá adiante. Após seis meses de trabalho constante, ele tinha pronta a primeira versão do livro. Uma das pessoas que leram o manuscrito sugeriu-lhe dar ao livro um caráter mais prático, seria melhor ser mais um manual do que o relato de uma experiência pessoal. Por que não um capítulo especial para professores? Juliano jogou metade do livro no lixo, reconstruiu o conteúdo, pesquisou para atender professores, agrupou os casos de ativismo, negócios, mídia e até os dos “efeitos colaterais” da rede.

Dividido em três partes, o livro passa por todos os pontos substanciais daquilo de mais importante que a internet trouxe ao mundo, a possibilidade de o usuário não somente se comunicar universalmente em rede, mas também ser capaz de gerar conteúdo próprio. Nele, o leitor vai saber muito mais do que sabe intuitivamente sobre chats, comunicadores

instantâneos, fóruns, listas de discussões, blogs, ferramentas wiki, agregadores de conteúdo, folksonomia, algoritmos sociais, automoderação e cross-mídia além de entender por que os aspectos negativos da rede sempre atraem mais atenção da mídia. No fim, ele mesmo se pergunta se a internet é um destino ou um desafio, arrola ingenuidades e monstruosidades que envolvem o debate a respeito dessa indústria e apela para o bom senso dos indivíduos. É um livro, ao mesmo tempo, técnico e humanista, didático e profundo. Vai muito além do lugar-comum das obras produzidas no Brasil sobre essa nova indústria.

Talvez quando você estiver lendo este prefácio não se fale de outra coisa na imprensa especializada que não da Web 3.0, ou seja, aquele mecanismo para fazer busca relacional capaz de unir textos sobre um mesmo assunto e descartar as repetições e redundâncias, a busca inteligente (e ninguém disse ainda se ela será inteligente ao ponto de descartar as informações não confiáveis…). Talvez, quando este livro estiver pronto, uma outra bolha, que inflou a Web 2.0 e fez Rupert Murdoch pagar mais de meio bilhão de dólares pelo My Space, esteja murcha, desmanchada pelo ar rarefeito das realidades virtuais. Nada disso, porém, será suficiente para tirar deste livro o caráter de testemunho dos mais verazes do quanto o inter-relacionamento mais une as pessoas do que as separa ou individualiza, mais cria comunidades afins do que as distancia pela frieza interposta pela máquina; ou que a enorme dispersão necessária ao bom andamento das redes tenha encontrado na tecnologia interativa a redenção para o individualismo relativista.

Faça bom proveito dessa leitura e descubra as razões de um historiador que aposta firme na comunicação livre entre os homens.

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